Crise de abastecimento causada pela escassez de caminhoneiros cria oportunidades inesperadas; nos Estados Unidos, é caça ao funcionário. Vilma Gryzinski:
Socos,
chutes, cusparadas e palavrões. As cenas nas filas para abastecimento
nos postos de gasolina na Inglaterra não são bonitas – nem completamente
estranhas aos brasileiros.
Com
o pânico do desabastecimento se espalhando, o inevitável aconteceu e
90% dos postos já tinham fechado no domingo, com os estoques esgotados.
Não
falta combustível, mas faltam motoristas para transportá-lo até os
postos e o governo demorou para reagir. Aprovou vistos de emergência
para motoristas de países da União Europeia, mas nem de longe conseguirá
suprir os 100 mil postos necessários para retomar a normalidade.
Boris
Johnson deveria ter sido mais esperto, sabendo muito bem que
desabastecimento ou aumento de preços dos combustíveis é o tipo de coisa
que derruba governos. Ou no mínimo provoca reações furiosas.
Há
dois anos, um helicóptero presidencial chegou a ficar ligado na área de
decolagem do Palácio do Eliseu quando os coletes amarelos quase
marcharam sobre o elegante palacete para exigir a cabeça de Emmanuel
Macron – metaforicamente, ou talvez nem tanto; nunca se sabe com os
franceses. A onda de protestos dos coletes amarelos começou por causa da
criação de uma taxa “ecológica” adicional sobre os combustíveis. A
população das cidades menores, que depende em tudo do carro, explodiu em
fúria.
A
falta de motoristas de veículos de carga pesada no Reino Unido tem uma
multiplicidade de causas. Vai desde o Brexit, que tirou do mercado
caminhoneiros da União Europeia aborrecidos com o aumento do tempo e da
burocracia fronteiriça, até a pandemia. No ano passado, deveriam ter
sido feitos 70 mil exames para a habilitação de motoristas de veículos
pesados. Foram feitos menos de 40 mil.
A
falta de profissionais está provocando o fechamento de empresas de
transporte menores e o governo estuda abrir os cofres para dar ao setor
empréstimos em condições privilegiadas.
Num
sinal de desespero, o governo também cogita convocar integrantes das
Forças Armadas para reforçar o continente de motoristas.
Ironicamente,
num país pós-pandemia totalmente normalizado, o trabalho remoto estava
voltando pela pura impossibilidade de ir ao local de trabalho.
Em
compensação, nunca foi tão bom ser um profissional do ramo. A escassez
de mão de obra aumentou a remuneração e há ofertas na casa das 70 mil
libras por ano – mais de 450 mil reais, que tal?
Além
do salário equivalente ao oferecido a um advogado com formação de
primeira linha, os caminhoneiros ainda podem receber um “Golden Hello”,
um bônus de duas mil libras só por assinarem o contrato de dois anos.
O
Daily Mail reportou como caminhoneiros estão sendo “caçados” por head
hunters que frequentam as áreas de alimentação em postos de rodovias.
“Nunca
vi isso acontecer na minha área. É mais do que ganha o meu chefe”,
disse ao jornal um motorista identificado apenas como Barney, que
recebeu uma proposta de trabalhar no abastecimento a supermercados por
27 libras por hora nos dias úteis e 54 libras aos domingos – em reais,
quase oito vezes mais.
Motoristas
ganhando mais do que executivos podem vir a ser um fenômeno de se
espalhe pela Europa, onde a falta de caminhoneiros é igualmente uma
realidade do mercado.
Nos
Estados Unidos, a pandemia também está provocando reviravoltas sem
precedentes. Receber para ficar em casa e reavaliar o estilo de vida são
dois fenômenos que se combinaram para tirar muita gente do mercado e
aumentar incrivelmente a oferta de postos de trabalho.
Segundo
a revista Forbes, há empresas oferecendo até 100 mil dólares – leram
certo, 100 mil – como bônus na hora da contratação de profissionais
altamente qualificados.
Segundo
uma pesquisa de ofertas de postos de trabalho com pagamento de
bonificação de entrada, houve um aumento de 454% nesse tipo de
iniciativa entre agosto do ano passado e este.
Nada
surpreendentemente, as melhores ofertas são para profissionais da área
da saúde – os tais 100 mil dólares foram oferecidos por um plano de
saúde para neurologistas com especialização no tratamento de esclerose
múltipla. Um bônus similar foi oferecido a dentistas.
A
Raytheon, gigante da indústria bélica, estava oferecendo 50 mil dólares
a programadores de alto desempenho, com acesso a controles de segurança
de nível máximo.
Outros
profissionais relacionados pela Forbes com oferta de bônus para assinar
contratos: técnicos automotivos, cuidadores de animais, barbeiros,
cabeleireiros e cosmetólogos. Um hospital veterinário estava colocando
60 mil dólares na mesa por um profissional do ramo.
A
Walmart, maior empresa de varejo do mundo, ofereceu em julho cobrir os
custos das mensalidades de cursos universitários e livros para seus
funcionários – um programa de um bilhão de dólares em cinco anos.
Além
de atrair, as empresas americanas estão preocupadas em não perder
funcionários. No mercado financeiro, os benefícios incluem aumentos de
salários, de bônus por desempenho, de dias de folga e até as
superbicicletas estacionárias da marca Peloton, um sonho de consumo dos
fanáticos por exercícios. Na gigantesca Apollo Global Management, os
“bônus de retenção” estavam entre 100 mil e 200 mil dólares.
Comparativamente,
parece modestíssimo o bônus de 50 dólares oferecido por um McDonald’s
da Flórida a quem simplesmente comparecesse para fazer uma entrevista de
trabalho – mas o significado simbólico é enorme.
O
aquecimento das remunerações também alimenta a tendência inflacionária
registrada em vários países como subproduto dos incentivos em massa
dados para contrabalançar os efeitos econômicos malignos da pandemia.
No
Reino Unido, a inflação está em 4%, o suficiente para tocar alarmes em
todos os setores da economia, onde décadas de estabilidade e até de algo
perigosamente parecido com recessão fizeram esquecer, mas não apagar
completamente da memória, os 25% de inflação que ajudaram a eleger
Margaret Thatcher em 1979.
A
oposição hoje é do Partido Trabalhista, que não precisa fazer nada para
subir nas pesquisas exceto ver os preços subindo e a gasolina sumindo.
Boris Johnson que se cuide.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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