Na situação atual, há verdadeira expropriação, com os empreendedores rurais sendo abandonados à própria sorte. Artigo do professor Denis Rosenfield para o Estadão:
A
atual rediscussão sobre o marco temporal de demarcação de terras
indígenas sofre de um viés ideológico incontestável que nada tem que ver
com uma suposta injustiça originária que estaria sendo, assim,
reparada. Tal como está sendo apresentada, é como se estivéssemos diante
de um novo conflito entre bolsonarismo e anti-bolsonarismo, atraso
versus progresso, quando se trata, na verdade, de uma questão
constitucional, que já deveria estar resolvida segundo a Constituição de
1988. O politicamente correto se regozija, trazendo imensa insegurança
jurídica ao País. Há, aqui, uma infeliz sobreposição temporal que
termina obscurecendo a questão central.
Preliminarmente,
observe-se que nossa atual Constituição, em seu artigo 231, estabeleceu
claramente o marco temporal como sendo aquele quando de sua
promulgação, reconhecendo territórios indígenas às tribos que, no
presente, então ocupavam aquelas terras. Não se trata de qualquer
ocupação passada segundo uma autoatribuição. Quando do julgamento
posterior do caso da Raposa Serra do Sol, em 2009, tal posição foi
referendada com um justo acréscimo, a saber, que seriam também
reconhecidos como territórios indígenas os que estariam, naquela época,
em conflito ou contencioso, o que configuraria um esbulho persistente. A
intenção foi a de evitar que expulsões recentes destituindo os
indígenas de suas terras dessem origem a um direito. Dito isso, o
assunto deveria estar resolvido e pacificado, não fosse o
descontentamento dos perdedores, que, desde então, lutam contra a
própria Constituição. É a velha história jurídica brasileira: os
perdedores abusam de recursos até serem atendidos.
Não
é propriamente adequado que o Supremo Tribunal Federal (STF) se debruce
sobre uma questão pacificada do ponto de vista jurídico só porque a sua
composição mudou e os descontentes se agitam com apoio de um setor
importante da mídia. Entra um novo ministro e pretende tudo mudar, como
se o mundo devesse ser reinventado, como se os ministros anteriores
tivessem julgado sem nenhum conhecimento. É um desrespeito flagrante com
os seus antecessores. É a balbúrdia como princípio hermenêutico. O
Supremo deveria ser supremo, definitivo em suas decisões, sob pena de
deixar de sê-lo tornando-se fonte permanente de conflitos. O princípio
não poderia ser nova composição, nova decisão.
Para
ter uma ideia mais precisa dos territórios indígenas no País, atente-se
para os números: 1) 14,1% do território nacional é constituído por
terras indígenas, correspondendo a 119,8 milhões de hectares,
concentrados sobretudo nas Regiões Norte e Centro-Oeste; 2) se não
houver nenhum marco temporal que imponha um limite, as áreas
reivindicadas e em estudos remontariam a outros 117,12 milhões de
hectares, o que corresponderia a 27,8% do território nacional, situados
principalmente nas Regiões Centro-Oeste, Sul e Sudeste, áreas de intensa
atividade agrícola e pecuária, além de centros urbanos.
Aliás,
se formos seguir à risca a tese dos “direitos originários”, as
desapropriações deveriam começar pelas cidades de Salvador e Rio de
Janeiro, com os prédios sendo demolidos e os proprietários sendo,
segundo a atual regra, expropriados, o que ocorre usualmente no mundo
rural. Afinal, foi lá que aportaram primeiro os portugueses! O absurdo
deste raciocínio mostra bem ao que pode levar, ao seu extremo, a
anulação do marco temporal de demarcação de terras indígenas.
Segundo
o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a população
indígena é constituída por 896 mil índios, e 502 mil vivem em
territórios indígenas e 315 mil fora deles, boa parte em zonas urbanas.
Nestas não há problema fundiário, mas de política social, porque sofrem
eles de preconceito e com educação e saúde precárias. Urge que o Estado
intervenha, aqui, efetivamente, não ideologizando um problema grave de
injustiça. Logo, em torno de 500 mil indígenas estariam reivindicando
27,8% do território nacional. Não há algo errado nisso?
No
que diz respeito à zona rural, os conflitos têm se multiplicado, opondo
agricultores com posse e/ou títulos de propriedades, outorgados pelo
próprio Estado, e grupos de índios que reivindicam o que consideram
também como seus direitos. Estaríamos diante de uma oposição de direitos
que poderíamos considerar como justos de ambos os lados. Como resolver?
A solução seria simples, não fossem os interesses dos que vivem dos
conflitos. Muitas ONGs ficariam sem trabalho.
Com
efeito, bastaria que, em caso de uma disputa, o Estado constituísse uma
reserva indígena no local em questão, comprando terras, a valor de
mercado, e indenizando os seus proprietários. Os agricultores teriam os
seus direitos preservados e os indígenas, os seus igualmente
assegurados. A justiça seria feita pelo atendimento a ambos os direitos.
Na situação atual, há verdadeira expropriação, com os empreendedores
rurais sendo abandonados à própria sorte.
Não se repara uma injustiça com outra injustiça!
PROFESSOR DE FILOSOFIA NA UFGRS.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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