BLOG ORLANDO TAMBOSI
Como lembrava Max Weber, não é possível cumprir encomendas, prazos ou contratos ignorando o relógio. João Pereira Coutinho via FSP:
O
problema da pontualidade é que nunca está lá ninguém para a apreciar.
Dito espirituoso, conhecido, dramaticamente verdadeiro. Sou testemunha.
Quando chego, não há testemunhas.
De
tal forma que, com a idade, com a experiência, com a carência, comecei a
levar serviço só para preencher o tempo. Já comecei e terminei certas
obras durante a espera —“Guerra e Paz”, “Anna Karenina”, por aí. Aprendi a coser. Faço pedicure com certo grau de profissionalismo.
E
os meus cochilos atravessam as cinco fases clássicas do sono. Quando
acordo e o companheiro finalmente aparece, constato com tristeza que o
room service já não é o que era. Ele nem sequer trouxe o café da manhã
numa bandeja.
Alguns
amigos, profissionais do atraso, acusam-se de “intransigência” com a
pontualidade (“Você é algum nazista, por acaso?”). E aconselham, em nome
da minha saúde, um pouco mais de tolerância (“Ninguém morre”).
Tentei.
Violando a minha natureza, comecei a chegar com dez, 20, 30 minutos de
atraso. Não funcionou. A pessoa por quem esperava acrescentou dez, 20,
30 minutos de atraso ao seu atraso habitual, como se houvesse uma força
magnética entre nós, impedindo um encurtamento da distância.
Agora
que penso nisso, talvez o caminho seja eu chegar com antecedência: se
eu recuar dez, 20, 30 minutos, talvez o camarada possa recuar um pouco
no seu atraso e chegar à hora combinada. Vou experimentar.
Moral da história?
Definitivamente, não estou rodeado por protestantes, muito menos por calvinistas.
A pontualidade, um conceito inexistente na civilização greco-latina,
foi um produto da reforma: desse momento em que a relação dos homens com
Deus dispensou a mediação institucional e a conduta humana, nos seus
detalhes mais cotidianos e ínfimos, passou a ser vigiada pelo patrão lá
de cima.
A
industriosidade é filha dessa nova relação de vigilância: as mãos
ociosas fazem o trabalho do Diabo, para usar a frase célebre. Tradução:
se queremos ser recompensados pelas nossas ações terrenas, convém não
jogar tempo fora, nem fazer esperar o Coutinho.
Além disso, a sociedade comercial e industrial que o protestantismo promoveu apenas reforçou a virtude da diligência. Como lembrava Max Weber
no clássico “A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo”, não é
possível cumprir encomendas, prazos ou contratos ignorando os ponteiros
do relógio.
E,
claro, não é possível trabalhar na fábrica ou então no escritório sem
critérios básicos de entrada e saída para os funcionários.
É
por isso que os povos do norte levam a sério o relógio que têm no
pulso. Quando viajamos para sul, viajamos também para uma espécie de
neo-panteísmo em que o Sol passa a orientar as tropas e só existem três
horários possíveis: manhã, tarde e noite.
Um
encontro “de manhã”, significa algures entre as dez e o meio-dia. O
conceito “de tarde” nunca começa antes das quatro. E quem combina um
jantar sabe que ele oscila entre o crepúsculo e a alvorada.
Essa,
pelo menos, era a teoria habitual. Porque agora há outra, filha deste
tempo em que a medicalização da vida oferece todas as respostas.
Leio no jornal francês Le Figaro que pessoas habitualmente relapsas com as horas podem sofrer de maleitas várias.
O
défice de atenção está no topo da lista. Mas também há perturbações
obsessivo-compulsivas e fobias várias que impedem o cidadão de sair de
casa para cumprir horários.
Sem
falar de personalidades histriônicas, ou claramente narcísicas, que
precisam da expectativa da plateia para uma entrada em grande. Como se
fossem estrelas do pop na hora de dar concerto.
Nessa
última versão, sou eu que estou falhando por não aplaudir a diva quando
ela chega. Mil desculpas. Da próxima vez, prometo levar flores.
Aliás,
se a falta de pontualidade revela um distúrbio, não é de excluir que a
minha pontualidade também seja um. Trauma de infância, baixa autoestima,
gosto pelo masoquismo —quem sabe?
Um
dia desses, enquanto espero e me desespero numa esquina qualquer da
cidade, ainda serei removido da calçada por dois enfermeiros.
Tudo bem, estou pronto para o encontro. Só espero que eles sejam pontuais.
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