Eduardo Affonso
O Globo
Fui ávido para mergulhar no Caribe e no comunismo. Encontrei-os em frente ao hotel. Um, aspergindo azul sobre o Malecón; o outro, na forma de um sujeito que veio oferecer charutos desviados das fábricas estatais. No, gracias. Será que eu não queria rum legítimo? Conhecer uma amiga dele? Um amigo, quem sabe?
Essa cena se repetiu dezenas de vezes. Mas não era nos tempos de Fulgêncio Batista que o país se tornara o paraíso do contrabando e da prostituição? Cuba e seus paradoxos…
DIZ A MILITANTE – Nas sacadas dos sobrados da Habana Vieja (impossível estar em Cuba e não pensar na Bahia), há lembranças de uma já dilapidada elegância. Numa dessas quase ruínas, a orgulhosa militante faz questão de contar que falta manteiga, mas todos têm pão; que ela não teve boneca, mas a filha é cientista. Quantos no mundo — pergunta, retoricamente — podem dizer isso? Não sei.
Adiante, na calçada onde se trocam tampas sem panela por panelas sem tampa, outra mulher, com dólares amarrotados na mão, me pede para comprar, numa loja exclusiva para estrangeiros, açúcar, sabonete, um pedaço de frango. Onde se aceita peso, falta quase tudo.
O analfabetismo foi praticamente erradicado. Mas educação, entendida como diálogo, reflexão, questionamento e construção ativa do conhecimento, isso não há. Há doutrinação — o oposto de preparar para o mundo, de proporcionar a experiência de saber o que existe mais além.
E AS LIVRARIAS – Na teoria, em Cuba haveria livros a mancheias, edições baratas por causa do papel de baixa qualidade e do pouco caso com direitos autorais. Na prática, bem fornidas só as prateleiras de marxismo. Mas tive experiências enriquecedoras em livrarias.
Com um quê de filme de 007, elas tinham se tornado o lugar perfeito para câmbio ilegal. Trocavam-se olhares, acertava-se a taxa (dez vezes maior que a oficial) com gestos sutis. Pesos cubanos eram deixados entre as páginas ásperas de um volume sobre materialismo dialético, enquanto se encartava a cédula de dólar numa obra em papel-jornal sobre a concentração de capital. Depois, era só devolver os exemplares às estantes, disfarçar, e cada um folhear o livro alheio, recolhendo discretamente o que ali houvesse de valor.
Ensaia-se agora, no verão de lá, uma “primavera de Havana”, com o povo — alegre e generoso como poucos — indo às ruas exigir liberdade, oportunidade, dignidade, comida. Quem derrubou há 62 anos uma tirania saberá como fazer uma nova revolução, trocando “Patria o muerte” por “Patria y vida”.
SEM DATA PARA ACABAR – Estive na Hungria de Kádár, na Tchecoslováquia de Husák, na Iugoslávia de Dizdarevic. No Mianmar de uma junta militar, na Cuba de Fidel. E, para variar, no Chile de Pinochet. Muita sorte teve, muita sorte terá quem andou por lá como viajante, sabendo que as restrições eram por poucos dias, não sem data para acabar.
Na última noite em Havana, me apareceu no hotel a cubana para quem comprei comida e com quem comentei não ter encontrado os livros que queria. Trazia numa sacola todos os de Alejo Carpentier e Nicolás Guillén da sua estante.
Por isso, Cuba seja aqui. Uma gente tão parecida com a nossa, que não quer saber de ditadura. Seja a de Castro, seja a de Ustra.
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