Os historiadores teriam dificuldade de explicar um golpe liderado por um cantor sertanejo. Leio que ele se arrependeu, amigos disseram que bebeu muito. Fernando Gabeira via O Globo:
Agosto é um estranho mês, todos sabemos no Brasil. Por que não o seria sob Bolsonaro, que em si já é um estranhíssimo governo?
Numa
noite dessas de agosto, vi nas redes um cantor sertanejo nos ameaçando
de caos e até fome se não adotássemos o voto impresso.
Na minha santa ignorância, perguntei: mas o que pensa o outro?
Achava
que os cantores sertanejos sempre se apresentam em dupla, mas o autor
da ameaça faz uma carreira solo. Achava também que cantam amores
perdidos, a natureza, um pé de serra, um animal de estimação.
O
cantor se dizia ligado aos caminhoneiros, daí o caos e a fome que se
espalhariam pelo país. Minha perplexidade foi ainda maior: diesel e
gasolina aumentam desde o princípio do ano, o etanol já está 34% mais
caro. Merecíamos um castigo tão grande, por optar pela votação
eletrônica?
Tenho sonhado muito nos últimos anos. Todas as noites, sonhos disparatados, mas — o que fazer ?— sonhos adoram o absurdo.
Sinceramente
fiquei com medo de dormir e sonhar com a multidão pedindo a volta dos
orelhões com fichas nas bancas de jornal. Ou numa hipótese mais radical,
cartazes exigindo a volta do Rhum Creosotado, aquele dos famosos
anúncios nos bondes de antigamente.
A
indecisão diante do sono me lembrou uma história muito contada. É a do
pobre homem que vivia num cômodo abaixo de um boêmio que chegava tarde à
noite e tirava ruidosamente as botas. As duas pancadas da bota batendo
no assoalho arruinavam o sono do vizinho de baixo.
Um
dia ele tomou coragem, foi até o boêmio e pediu que tirasse as botas
silenciosamente. Ao voltar para casa de madrugada, um pouco bêbado, o
homem tirou uma bota ruidosamente e se lembrou do vizinho, corrigindo-se
logo e depositando a outra em silêncio.
Aconteceu
o previsível: o pobre homem passou a noite esperando que a outra bota
fosse depositada, até que subiu ao quarto do boêmio e pediu que jogasse
logo a outra bota, pois precisava dormir e trabalhar bem cedo.
A
situação de muitos de nós é parecida. Estamos à espera de um golpe
sempre anunciado nas entrelinhas e temos vontade de que tentem logo,
para resolvermos nossa vida.
Os historiadores teriam dificuldade de explicar um golpe liderado por um cantor sertanejo.
Leio que ele se arrependeu, amigos disseram que bebeu muito.
Outra perplexidade de agosto: um sertanejo bêbado cantando um tango é muito mais previsível do que propondo um golpe.
Mas,
como se diz na linguagem popular, onde há fumaça há tanques, outras
pessoas com chapéu de caubói aparecem na internet dizendo que acabou a
tolerância, que agora o país pegará fogo se não adotarmos o voto
impresso.
Rigorosamente,
os biomas brasileiros estão pegando fogo. Não teremos como os afegãos a
possibilidade de nos agarrarmos no trem de pouso de aviões que partem.
Nossa
única chance seria abraçarmos os pássaros maiores, jaburus, gaviões,
urubus-reis, nhambus, jacus, e tentar pousar noutras raras florestas do
planeta.
Com
todo o respeito a essas pessoas com chapéu de caubói que se sentem
acima do Estado Democrático de Direito, é preciso lembrar que a
população se sente cada vez mais distante do governo Bolsonaro.
As
pesquisas mostram a crescente consciência de que Bolsonaro foi apenas
um acidente histórico e de que, apesar da importância númerica das
forças conservadoras no Brasil, ele não as representa na sua totalidade.
Quando
essa consciência se cristaliza, a extrema direita isolada nada pode
fazer, além de cargas de cavalaria como nos filmes de faroeste e
desfiles de tanques enfumaçados.
A
imposição pela força é uma visão idealista que não se sustenta nem à
direita nem à esquerda. A exportação do socialismo empurrado por
baionetas fracassou na Europa; o idealismo liberal de se instalar no
Afeganistão foi um fracasso.
Por mim, podem jogar logo a segunda bota, apesar do barulho e do peso das esporas.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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