Responsáveis por atentados suicidas no aeroporto de Cabul acham que os radicais que tomaram o poder estão bonzinhos demais com os americanos. Vilma Gryzinski:
Todo
mundo sabia que ia ter um atentado no aeroporto de Cabul onde a
retirada dos americanos e outros estrangeiros está chegando perto dos
momentos finais. Joe Biden citou a ameaça como uma das razões para
terminar a evacuação o mais rapidamente possível.
Nesse
sentido, perversamente, e sem que o presidente tenha nada a ver com
isso, os dois ataques suicidas que mataram 12 militares americanos, além
de dezenas de afegãos, até tornam a desastrada retirada um pouco mais
palatável.
Os
atentados suicidas trouxeram para o primeiro plano, num momento de caos
e espanto com saída apressada e humilhante dos Estados Unidos, um grupo
que é mais radical ainda do que o Talibã, como se isso fosse possível.
O
ISIS-K – com esse nome porque opera primordialmente na região de
Khorassan – tem exatamente a mesma formação doutrinária do Talibã:
movimentos ultrafundamentalistas que lutam pela imposição de um emirado,
semelhante ao que imaginam ter sido a forma de governo de Maomé e seus
seguidores, nos primórdios da religião muçulmana.
Para
isso, dedicam-se integralmente à jihad, a guerra santa, convencidos de
que todas as durezas e perdas são apenas percalços insignificantes
diante do objetivo final. A morte é tratada como uma santificação. A
derrota do Estado Islâmico original, na Síria e no Iraque, incentivou os
seguidores dessa ideologia a espalhar a jihad pelo Afeganistão e o
Paquistão e atraiu remanescentes.
O
fundador original do ISIS-K, Hafiz Said Khan, foi morto num bombardeio
americano em 2016. O líder atual é um iraquiano, Shahab Mujahir.
Se
são tão parecidos e igualmente dedicados a implantar a versão mais
radical da sharia, as leis islâmicas que remontam ao século VII, por que
se dão mal?
Se
a situação não fosse tão trágica no Afeganistão, seria o caso de dar
risada. A liderança do Estado Islâmico local acha que o Talibã conspirou
com os Estados Unidos para tomar o poder em praticamente todo o país
(uma teoria conspiratória que, ironicamente, tem seguidores nas franjas
mais à direita dos Estados Unidos).
O Estado Islâmico afegão tem uma newsletter, acreditem, e é através dela que dá para captar a animosidade entre os dois grupos.
“Nós
vimos como houve uma coordenação direta entre as forças americanas e o
Talibã durante o avanço sobre Cabul e como as operações de retirada de
milhares de cruzados e espiões continuaram, com as duas partes dando
provas de confiança mútua”, diz o que poderia ser chamado de editorial
do ISIS-K.
Usando
uma expressão em árabe que significa adoradores de ídolos – um dos mais
graves pecados para a religião muçulmana –, o editorial acusa: “O que
aconteceu foi simplesmente a substituição do Thagut de cara limpa, por
outro, barbudo”.
Concluindo,
a newsletter provoca: “Se os cruzados achassem que dariam lugar aos que
fossem estabelecer o domínio islâmico sobre ela, não deixariam nem uma
construção em pé e bombardeariam os hospitais antes das bases
militares”.
Não
é preciso ser conspiracionista para se espantar com a rapidez do recuo
americano e com a quantidade estarrecedora de material bélico
abandonado, incluindo dezenas de helicópteros Blackhawk e aviões Super
Tucano A-29.
A
quantidade de aeronaves deixadas para trás levou o senador Marco Rubio a
dizer: “Nós doamos uma Força Aérea inteira ao Talibã”.
Ao
todo, os Estados Unidos gastaram 83 bilhões de dólares para equipar as
forças armadas afegãs que tentaram, inutilmente, transformar numa força
efetiva de combate.
Equipamentos
sofisticados só funcionam com manutenção igualmente de alto nível, mas
existem arsenais gigantescos de material bélico mais simples que poderão
ser usados sem problemas pelos talibãs – provavelmente, aumentando as
suspeitas do ISIS-K.
Só
para dar uma ideia da monstruosidade do grupo, em maio do ano passado
eles praticaram um atentado contra uma maternidade, matando 24 pessoas,
incluindo parturientes e bebês recém-nascidos. Motivo: era o hospital de
um bairro xiita, o braço minoritário do Islã e considerado pelos
radicais sunitas como apóstatas a serem eliminados.
O
Talibã que tenta se passar por bonzinho, distinguindo-se das bestas
feras do Estado Islâmico, tem a responsabilidade de governar o país de
forma que não seja inteiramente maluca, como fizeram da primeira vez,
nos anos noventa, não está deixando passar nenhuma oportunidade de
defender as credenciais fundamentalistas. Entre outras restrições,
proibiu a música, considerada não-islâmica.
“Mas
esperamos poder convencer as pessoas a não fazer essas coisas, em vez
de pressioná-las”, disse ao New York Times o porta-voz Zabiullah
Mujahid.
O ISIS-K provavelmente não aprova tanta magnanimidade.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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