O futuro da profissão docente é um mistério e os sindicatos fazem tudo para extingui-la. Bruna Frascolla para a Gazeta do Povo:
Um
tema pouco abordado por professores universitários é o do desemprego
dos seus alunos acadêmicos. Antes da gestão Haddad no Ministério da
Educação, a universidade pública brasileira era uma pequena malha de
cacicados locais muito bem financiada e não produzia mais acadêmicos do
que era capaz de absorver. Se esses acadêmicos eram bons ou não, é uma
outra história; o fato é que não existia a figura do doutor
desempregado. Depois de Haddad, o Brasil se tornou uma espécie de Cuba
superlativa: naquela ilha, os taxistas têm diploma de ensino superior;
neste país continental, os motoristas de Uber têm doutorado.
O
assunto da gestão Haddad, com seu Reuni, fica para uma próxima. Por
ora, tomemos o simples dado de que o Brasil tem uma pós-graduação
inchada, que produz muito mais acadêmicos do que os departamentos são
capazes de receber. Já expliquei como é a vida de jovem acadêmico aqui.
EAD dispensa professor
Um
potencial beneficiário da expansão da pós-graduação pública, em tese,
seriam as faculdades privadas; afinal, mão de obra qualificada é sempre
bem-vinda para compor quadros docentes respeitáveis e abrilhantar o nome
da instituição. Mas o leitor pode imaginar algumas de razões para eu
escrever “em tese”: a qualidade dos egressos de muitas pós deixar a
desejar, de modo que mais valha pegar um profissional experiente para
ensinar do que um imberbe cheio de diplomas. Além disso, muitas
instituições privadas serem do gênero “pagou-passou”, totalmente
despreocupadas com o nome da instituição ou sua qualidade. Uma outra
razão bem importante, porém, é o tele-ensino.
Vejam
a situação de um professor de filosofia que não passou num concurso.
Introdução à Filosofia é uma disciplina muito comum em currículos do
ensino superior, e sempre está presente em cursos públicos e privados de
Direito. Ética, Estética, Lógica e Filosofia da História são outras
disciplinas que constam em currículos de cursos com bastante demanda no
ensino superior e que, em tese, são ministradas pelo professor formado
em filosofia. Assim, seria de supor que todas as privadas tivessem
espaço para receber um professor de filosofia.
Nos
meus tempos de academia, conheci um doutorando que ficava exatamente
com essa função. Já pela experiência dele, via-se que a existência de
várias instituições privadas não implicava, de modo algum, a contratação
de vários professores: ele zanzava por Salvador pulando de faculdade em
faculdade para dar aulas a várias turmas lotadas, beirando os cem
alunos. Vale destacar também que era um senhor paternal de meia-idade,
muito bonachão e exímio contador de causos. Ele dividia o mercado das
particulares não com outros acadêmicos, senão com professores de
filosofia que não tinham metade do seu conhecimento e empenho em
aprender. Ou seja, por mais que ele fosse um pesquisador, a razão da sua
contratação era a habilidade de showman que os cursinhos
pré-vestibulares demandam para manter os adolescentes entretidos.
Quando
fui pedir a ele conselhos sobre locais para deixar currículo, eis que
ele tinha ido do inferno ao céu em pouco tempo, sendo que o resultado
era não haver lugar nenhum para eu deixar currículo. O céu era um só, na
sua perspectiva: enfim passara num concurso. Teria que mudar de estado e
deixar o contato com família e amigos para trás, mas há muito o céu dos
acadêmicos deixara de incluir a escolha do local onde morar. E o
inferno era o seguinte: passara alguma lei nova que permitia a oferta
de disciplinas na modalidade EAD em cursos presenciais, de modo que ele
mesmo foi contratado para gravar várias videoaulas e dispensado. Depois
dele, o dilúvio. Não há mais espaço para um professor viver dando aulas
de filosofia naquelas instituições particulares.
Foi
assim que descobri que EAD era mesmo igual ao vetusto curso por
correspondência, em que a pessoa fica em casa recebendo material
previamente preparado. Aí a instituição contrata um anônimo qualquer
para corrigir provas ou ficar de monitor, tirando dúvidas.
Isso
está longe de ser particularidade do Brasil. Viralizou nas redes há
pouco tempo a história de um aluno no Canadá que se entusiasmara com as
aulas online de um professor de História da Arte ficara frustrado ao
descobrir que o professor estava morto havia mais de um ano.
Novidades tecnológicas
A
ideia de ter aulas com os mortos é, por si só, estupefaciente e
maravilhosa. Quantos monges medievais não venderiam a alma ao diabo para
poder ter aulas com Aristóteles? E se pudéssemos ter aulas com os
sábios de Alexandria cujos livros foram incinerados? Jogando um balde de
água fria nos nossos devaneios, há o fato de os mortos continuarem sem
responder. O que se pode fazer com os vídeos, hoje, é o mesmo que se
podia fazer com a escrita, desde a Antiguidade: guardar uma mensagem e
revivê-la em privado. Se não conjuraremos o espírito de Aristóteles para
que ele ministre aulas, havemos de nos contentar em abrir seus livros e
reviver as palavras que um telefone sem fio milenar reza terem sido
escritas por ele.
Aristóteles
e devaneios à parte, assistimos hoje aos impactos que a revolução das
comunicações tem sobre o ensino. Se o meu ex-colega morresse, ninguém
avisaria os ex-empregadores em outro estado e os alunos continuariam
assistindo às suas aulas. Mas se ele morresse e avisassem, como isso
melhoraria as coisas? Queremos um mundo em que um funcionário de RH fica
empenhado em deletar aulas dos professores quando eles morrem? O rapaz
do Canadá não ficou triste por ter assistido a aulas com um morto, e sim
porque aquele cujas aulas eram tão boas estava inacessível por causa da
morte – e a universidade nem se dera ao trabalho de avisar.
Ter
aula com os recém-mortos é tão inovador quanto ter aulas com
professores de primeira do mundo desenvolvido. Para isso, basta saber
inglês e ter Internet, sendo que com Internet e tempo disponível um
jovem aprende inglês sozinho.
Se
há vinte anos o economista da Unicamp repetia seu desenvolvimentismo
como fina flor da teoria econômica, hoje o aluno de economia tem acesso a
todo o debate dos economistas sérios. E na psicologia? O ensino
superior estatal brasileiro está congelado lá nos anos 1970 e raramente
fala de algo muito mais novo do que Skinner. Nada de psicologia
evolucionista, nada de terapias mais novas, como TCC: psicologia amiúde é
psicanálise e behaviorismo. Mas qualquer aluno de psicologia tem acesso
a centros sérios do mundo desenvolvido. Em várias áreas, os alunos
brasileiros, com Internet, percebem que seus professores estão cobertos
de teia de aranha.
Mas e o emprego?
Ao
que parece, o professor canadense morreu, não foi substituído e suas
aulas continuaram lá como a luz de uma estrela distante que já se
apagou. A universidade tem um salário a menos para pagar. Quanto ao meu
ex-colega, se ele não tivesse dado um golpe de sorte e passado num
concurso, teria ficado simplesmente desempregado, por melhores que
fossem suas aulas. Essa é uma condição sem igual para a maioria das
profissões liberais. Quantos profissionais podem ter igual valor estando
vivo ou morto? Só o artista. Agora, é possível os professores terem a
sina igual à de Van Gogh: viver na miséria e gerar rios de dinheiro post
mortem.
A
questão do emprego, nesse cenário, é uma incógnita. Nessa situação,
sindicatos docentes que estivessem interessados no futuro de sua
profissão deveriam empenhar seus esforços em sentido contrário ao EAD.
Mas, porém, contudo, todavia, o que vemos é estarem os sindicalistas
interessados no futuro de suas próprias pessoas. Num futuro bem
imediato, nos próximos meses; afinal, os sindicatos docentes fortes são
os dos professores concursados.
Que
quer um sindicalista concursado? Transformar a pandemia em férias pelo
máximo de tempo possível e ficar sem pôr os pés no local de trabalho o
máximo de tempo possível. Assim, eles adotam o EAD, dizem – com razão –
que os alunos pobres têm dificuldade com o ensino online (é tudo com o
pacote de dado no celular) e por isso deixam a universidade funcionando
em ritmo devagar, com aulas facultativas (ou seja, para quem tem
computador e wi-fi em casa). Como só uns poucos professores bastam para
dar essas aulas, os sindicalistas jogam o teletrabalho no colo dos
novatos do departamento e vão curtir essas férias que já duram mais de
um ano.
Para
piorar, o mesmo problema é transplantado para o ensino básico, no qual
não existia essa possibilidade de as escolas particulares ofertarem
aulas gravadas. Os sindicatos docentes escolares também querem ficar em
casa e estimular o teletrabalho – que é facilmente confundido com
gravação de aula. Como as escolas privadas estão sofrendo com o
fechamento da economia, é uma questão de tempo até surgir a demanda pela
oferta de aulas gravadas, cortando assim o custo do professor.
O futuro da profissão docente é um mistério e os sindicatos fazem tudo para extingui-la.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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