A crueldade se esconde sob o manto de uma ‘família feliz’.O silêncio é aterrador! Artigo do professor Denis Rosenfield para o Estadão:
O
assassinato do menino Henry, de apenas 4 anos, em sua casa,
provavelmente em seu quarto, perpetrado com toda a probabilidade por seu
padrasto com a cumplicidade e participação de sua mãe, coloca-nos
diante de uma face sombria da natureza humana. Não se trata de um crime
qualquer, mas de um crime que foge dos parâmetros do que tendemos a
considerar normal. Não há nada de banal aqui, uma vez que entra em cena
um tipo de ação voltada para a maldade, tendo-a como guia.
Não
estamos diante de uma ação má contraposta a uma ação boa, na medida em
que pessoas que cometem tais atos se situam para além desta distinção
moral. Sentimentos morais estão aqui completamente ausentes, não
orientam tal tipo de comportamento. O que se pode dizer de uma mãe que
mente e encobre o assassinato de seu filho? Ou de um padrasto (ou seja
lá o que essa pessoa signifique) que tortura durante semanas essa
criança até a explosão hemorrágica de seus órgãos internos? Pessoas que
agem dessa maneira visam única e exclusivamente à destruição do outro.
A
crueldade é outro componente desse tipo de ação. A tortura sistemática,
o ritual de seu acompanhamento durante semanas, o gozo do sofrimento
alheio e a progressão da violência expõem um comportamento estrangeiro a
qualquer denominação de normalidade. O criminoso age impunemente, com
uma mãe conivente e uma babá medrosa de poder ser ela mesma objeto de
tais atos. Cria-se uma teia de cúmplices, cada um conforme a sua
“razão”, cuja característica central é o acobertamento e o silêncio.
Depois, procurarão elas dizer que foram coagidas, ameaçadas ou coisa que
o valha. A crueldade se esconde sob o manto de uma “família feliz”. O
silêncio é aterrador!
O
ato mau, nesta acepção, não é simplesmente uma explosão, algo súbito,
como sob o efeito de drogas ou num surto psicótico, mas algo que se
inscreve num “cálculo”, medindo cada passo na execução progressiva da
violência. Há uma ascensão da crueldade, cujas etapas exigem meios de
execução e falas que encenem uma espécie de “normalidade”. São atos
frios, não guiados por emoções, mas por uma certa forma de racionalidade
que tem como finalidade a maldade. Ou seja, são atos que deveriam ser
mais propriamente denominados irracionais, porém de uma irracionalidade
específica, a de estar voltada friamente, com cálculo, para o mal.
Hannah
Arendt, ao refletir sobre o caso Eichmann, utilizou a expressão
“banalidade do mal” para caracterizar o comportamento desse oficial
nazista. A expressão terminou fazendo fortuna, embora a própria autora
não tivesse clareza de seu significado. Serviu, na época, para descrever
a natureza de um ato cujo autor expunha uma certa normalidade, como se
fosse um mero executor de ordens de um Estado anormal. Um comportamento
“normal” em outros aspectos, salvo nesse precisamente. Independentemente
de Eichmann não ser um mero executor e de ter plena consciência e
responsabilidade de seus atos, o que está em questão é a forma de
acobertamento de um tipo distinto de maldade, ou seja, o de atos
exclusivamente voltados para o mal, para além da sua distinção em
relação ao bem. Numa carta a Scholem, Arendt se vê obrigada a melhor
explicar essa sua formulação, acrescentando, então, que a maldade
nazista não seria diferente em sua natureza de outras, salvo em seu
aspecto quantitativo, potencializado pela técnica. Ele nunca seria
“radical”, por ser somente extremo, não tendo tampouco “profundidade”
nem dimensão “demoníaca”. O conceito de mal radical, utilizado em
Origens do Totalitarismo, não é mais, agora, de valia, pois ao
perscrutá-lo nada se encontra, uma vez que só o bem teria
“profundidade”. A sua banalidade significaria o seu aspecto chocante por
expressar o comportamento de homens “normais” que, sob certas
circunstâncias, abandonam toda “normalidade”.
Posteriormente,
em seus Diários de Pensamento, ela se defronta com o caráter
insatisfatório de sua abordagem, desta vez para reconhecer a sua
limitação filosófica, restrita a uma análise moral, e não existencial,
voltada para a natureza própria, positiva nela mesma, da maldade. Quando
qualificamos cotidianamente uma pessoa ou uma ação como má, tal
afirmação dá lugar a sentimentos morais como compaixão, comiseração e
mesmo perdão. A relação com o outro se assenta em parâmetros morais
tanto para o bem quanto para o mal, engendrando um terreno comum de
entendimento e moralidade. Quando passamos, porém, para os fenômenos
individuais ou coletivos que seriam nomeados pela expressão “mal
radical”, tais parâmetros e sentimentos morais são implodidos, dando
lugar a expressões de horror, de não reconhecimento, de alteridade
absoluta, não ensejando nem compaixão nem perdão para os seus
executores.
Ao
pensarmos no Dr. Jairinho e em Monique, mulher e mãe, nos vemos na
necessidade de recorrer a outro conceito de maldade, que transborda
nossa forma habitual de pensar. E é esse transbordamento que se torna
objeto de pensamento ao propiciar a reflexão sobre esta espécie de sem
fundo da natureza humana.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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