Sempre que uma pequena elite sonha redesenhar o mundo, o resultado é o totalitarismo. E quanto mais nos informarem que tal é feito para nosso bem, mais assustados devemos ficar. José Bento da Silva para o Observador:
Tenho
por hábito dedicar o pouco tempo que tenho para ler autores finados.
Bem mortos, de preferência: a regra de ouro “pelo menos mortos há 50
anos” tem demonstrado ser a mais prudente. Tal como qualquer boa regra,
esta também tem as suas excepções. Por vezes leio autores vivos, mas já
em avançado estado de decomposição. Contudo, em 2020 quebrei todas as
regras e li Susie Scott, uma socióloga que não só está viva, como é
bastante jovem. Susie Scott dedica a sua investigação à “Sociology of
Nothingness”. Nothingness remete, no contexto do trabalho de Scott, para
o “vazio”, a “ausência”, o “nada”; para tudo aquilo que poderia ter
ocorrido, mas não ocorreu; para os desejos que nunca acontecem, mas que
podem condicionar aquilo que fazemos e somos.
O
que Susie Scott nos diz, é que tudo aquilo que não ocorreu e tudo
aquilo que nunca ocorrerá, têm tanto poder sobre nós como tudo aquilo
que ocorreu e tudo aquilo que ocorrerá. A nossa vida é determinada não
só pelas opções que tomámos, mas também pelas opções que não tomámos;
não só por aquilo que sabemos, mas também por aquilo que ignoramos. No
seu trabalho, Susie Scott fornece exemplos da vida quotidiana, como a
carreira que não escolhemos, quando, findo o ensino secundário, optámos
pelo prudente e não pelo que realmente queríamos estudar/”fazer na
vida”. Estas “coisas” que não fizemos, mas poderíamos ter feito, têm
imenso poder sobre nós: nós somos aquilo que decidimos ser, mas também
aquilo que decidimos não ser. O facto de ignorarmos como “teria sido”,
caso tivéssemos feito diferentes opções, tem o potencial de assombrar
aquilo que de facto somos e sabemos.
Tudo
isto parece evidente ao nível pessoal, mas é na sua transposição para o
nível social que a reflexão sobre aquilo que não fizemos e aquilo que
ignoramos ganha particular importância. O exemplo mais óbvio, no
contexto de 2020, é o confinamento que poderíamos não ter feito. Não
sabemos o que teria acontecido sem confinamento, para lá do que umas
previsões (astrologia disfarçada de matemática) nos dizem; ou para lá do
que sabemos ter ocorrido com doenças respiratórias anteriores. Mas, em
bom rigor, simplesmente não sabemos, porque não escolhemos essa opção.
No que toca ao que ignoramos, o final de 2020 fornece mais um excelente
exemplo na reacção perfeitamente histérica à mutação do vírus. Na BBC,
uma senhora catedrática destas coisas, afirmava taxativamente que era
preciso “fechar tudo” por causa da mutação. Quando a jornalista lhe
pergunta se estava envolvida na investigação sobre a mutação, afirma que
não; quando interrogada sobre porque é que afirmava taxativamente que é
uma mutação perigosa, diz: “se parece um pato e nada como um pato,
então deve ser um pato”. Portanto, com base na possibilidade de ser, e
não no facto de ser, tomamos a decisão radical de fechar Inglaterra e
condicionamos a nossa vida, não pelo que sabemos, mas por aquilo que,
por agora, ignoramos.
O
exemplo da mutação tem pormenores ainda mais interessantes. Informa o
Financial Times, que afinal a mutação não ‘é inglesa’: o que se passa é
que o Reino Unido é dos poucos países no mundo a fazer o mapeamento do
código genético do vírus (ver aqui).
Isto é: a mutação não foi encontrada noutros países, simplesmente
porque esses países não procuraram a mutação. Este exemplo consegue
atingir um novo patamar em relação ao poder daquilo que ignoramos quando
somos informados, por quem investigou a mutação (como o Professor
Francois Balloux), da sua total irrelevância… A opinião dominante acaba
por ser baseada não em factos, mas na sua ausência. E para entender o
mundo político hodierno, é mais importante olhar para o que ignoramos do
que para o que julgamos saber.
Como
uma espécie de corolário da ”Sociology of Nothingness” temos aquele que
é provavelmente o maior drama contemporâneo: o total desprezo por
relações de causalidade. A ausência de causalidade e de prova da mesma
não são um impedimento para a adopção de medidas radicais, muito menos
para cimentar a crença nas afirmações mais extraordinárias. Um bom
exemplo disto mesmo é o “Great Reset“.
O “Great Reset” é uma iniciativa do Fórum Económico Mundial (ver aqui),
apoiada por vários líderes mundiais (incluindo António Guterres e o
Papa Francisco). O “Great Reset” propõe que aproveitemos a Covid para
reinventar o capitalismo, tratar em definitivo da alegada “crise
climática” e redesenhar a forma como nos relacionamos. “Redesenhar” o
mundo é o grande lema (ver aqui).
O que é interessante em torno do “Great Reset” é, contudo, aquilo que
ignoramos e não aquilo que sabemos acerca da iniciativa. Por exemplo,
segundo o Fórum Económico Mundial, no novo mundo redesenhado não há
propriedade privada. Num dos anúncios de propaganda da iniciativa (ver aqui),
a primeira medida para combater as mudanças climáticas é apresentada da
seguinte forma: “You will own nothing. And you’ll be happy. Whatever
you want you’ll rent, and it’ll be delivered by drone.”
Mas
o que não é dito é: porque é que para tratar do clima, os cidadãos têm
que abdicar da sua propriedade privada e transformar aquilo que usam
numa renda? Já temos exemplos de como isto poderá ocorrer. O cidadão do
futuro não detém um carro, mas sim duas rendas: para o carro e para a
bateria. Se é para abolir a propriedade privada, quem detém as empresas
que produzem veículos, comida, roupa, etc? E qual a relação de
causalidade entre isto tudo e os objetivos estabelecidos?
No
novo mundo “redesenhado”, a humanidade (ou o que sobrar dela) vai
finalmente para o espaço. “Polluters will have to pay to emit carbon
dioxide”, logo seguido de “There will be a global price on carbon” e
mesmo antes de sermos informados do nosso destino: “You could be
preparing to go to Mars” (ver vídeo acima). Somos ainda informados
acerca do fim do consumo de carne, consumo esse, que tem sido
sistematicamente apresentado como factor essencial para o
desenvolvimento da espécie humana. Tudo em nome do planeta, da igualdade
nas suas mais variadas vertentes (as actuais e todas as que ainda não
foram inventadas) e com a garantia, não demonstrada, de que assim
alcançaremos emissões “zero” (uma impossibilidade, já agora). Ninguém
calcula quanto poupamos em emissões de carbono por não comer carne e
quanto é que povoar Marte “custa” em emissões. O importante acerca da
iniciativa não é o que é dito, mas o que é ocultado. E o que é ocultado
não é nenhuma teoria da conspiração. O que é ocultado é a demonstração,
com o estabelecimento de relações de causa-efeito, da eficácia das
medidas anunciadas.
É
Mark Carney, antigo governador do Banco de Inglaterra, enviado especial
das Nações Unidas para a acção climática e a finança, membro do Council
for Inclusive Capitalism, fundador de uma task force para criar um
“global offset market” e membro do board do Fórum Económico Mundial,
quem reconhece a eventual inutilidade das medidas para tratar dos
alegados desafios climáticos: “Mark Carney, (…) has now decided that in
the fight against climate change all weapons are needed — even those
with sometimes questionable effect.“(ver aqui).
Na
agenda do “Great Reset” seremos condicionados pelo que ignoramos, por
aquilo que é impossível determinar e não por factos verificáveis. Não
existe o estabelecimento de uma relação de causa-efeito entre a abolição
da propriedade privada, o fim do consumo de carne, o início das viagens
a Marte e os efeitos desejados pela iniciativa: igualdade de género,
racial, económica e emissões zero… como é que ir a Marte resolve tudo,
não sabemos nem queremos saber. Também não é explicado qual o interesse
em ir até Marte, mas chegados aqui, penso que já percebemos que tudo o
que sai do Fórum Económico Mundial não tem interesse.
No
mundo redesenhado pelos proponentes do “Great Reset“, os factos contam
pouco. Mas isso não impede muitos de acreditarem na eficácia e na
bondade da iniciativa. E numa época em que temos acesso a tanta
informação, o importante acaba por ser, não a informação que recolhemos,
mas a forma como interrogamos a realidade e a informação que escolhemos
consultar. A informação, tal como o resto que enumerei no início, tem
importância não pelo que representa, mas precisamente pelo que escapa a
essa representação. E o progresso científico foi feito por via da
constante interrogação daquilo que é representado e do que não é
representado. Há, contudo, coisas fundamentais acerca das quais sabemos
muita coisa. Sabemos, por exemplo, que sempre que uma pequena elite
sonha redesenhar o mundo, o resultado é o totalitarismo. E quanto mais
nos informarem que tal é feito para nosso bem, mais assustados devemos
ficar.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
Nenhum comentário:
Postar um comentário