Em
2020, a covid-19 matou quase 200 mil brasileiros. Muitas mortes teriam
sido evitadas se ao invés de uma cadeia de comando, Bolsonaro presidisse
um governo. Em um governo, a diversidade de ideias é estimulada e
decisões são geradas num ambiente de debate. Não é o que ocorre no
governo federal, lá manda quem pode, obedece quem tem juízo. Mas isso
não quer dizer que Bolsonaro tenha assumido a responsabilidade por suas
decisões, ao contrário, se calça em desculpas. A primeira foi que o STF
delegou a Estados o combate à pandemia. A última, que as empresas
deveriam correr atrás do governo implorando para vender vacinas. Se
mortes foram evitadas, isso se deve à ação da população, de médicos e
enfermeiras, de prefeitos,
governadores, do Legislativo e do Judiciário, e ocorreram contra a
vontade do presidente. Mas agora, com a aprovação pela Inglaterra,
Argentina e Índia da vacina desenvolvida pela AstraZeneca/Oxford, e o
início de seu uso no ano novo, as desculpas acabaram. De 1º de janeiro
de 2021 em diante, o sucesso do programa de vacinação brasileiro está
todo sob controle da cadeia de comando do presidente.
O governo federal, por meio da Fiocruz, optou por colocar todas suas
fichas na vacina da AstraZeneca/Oxford. E resolveu, ao invés de comprar
doses da vacina, celebrar um contrato de transferência de tecnologia.
Por esse contrato a Fiocruz recebe o ingrediente ativo da vacina em
grandes volumes, que serão fracionados, envasados, rotulados e embalados
nas instalações da própria Fiocruz, resultando em 100 milhões de doses
até junho de 2021. Numa 2ª etapa, a partir de julho, a Fiocruz assumiu a
responsabilidade de produzir o princípio ativo da vacina localmente,
garantindo o resto das doses necessárias, e a total independência do
Brasil. Para tanto, assumiu o encargo de construir e certificar novas
fábricas, comprar os frascos e tudo que for necessário para entregar as
doses de vacina para o Ministério da Saúde. A escolha de colocar todas
as fichas na vacina da AstraZeneca/Oxford foi uma decisão arriscada, que
parecia ter encontrado obstáculos quando saíram os resultados das
primeiras três vacinas. As vacinas da Pfizer e Moderna apresentaram
eficácia maior, 95%, quando comparada à eficácia de 70%, em média, da
vacina da AstraZeneca. Algumas falhas no estudo de fase 3 me levaram a
imaginar que talvez demorasse para alguma agência regulatória aprovar a
vacina. Errei. O fato é que a Inglaterra analisou os dados apresentados
pela AstraZeneca e concedeu licença emergencial para a vacina. Argentina
e Índia fizeram o mesmo. O governo inglês já está recebendo as doses
que comprou, embaladinhas e prontas para uso na semana que vem. Isso
significa que a AstraZeneca possui um dossiê que foi entregue ao governo
inglês, argentino e indiano e foi aprovado. A cadeia de comando não
entregou o dossiê (Fiocruz) e tampouco examinou o dossiê (Anvisa). Se
isso já ocorreu na Argentina e na Índia, cabe perguntar por que ainda
não ocorreu no Brasil. O prazo para a Fiocruz entregar o pedido à Anvisa
é 15 de janeiro. E a Fiocruz pretende entregar as primeiras doses da
vacina ao Ministério da Saúde em 16 de fevereiro. Um mês e meio depois
da Inglaterra receber doses prontas da AstraZeneca, e um mês após a
entrega pela AstraZeneca do princípio ativo para a
Fiocruz (previsto para 9 de janeiro). Será que as fábricas não ficaram
prontas? Não foram certificadas? Faltam frascos? Não sabemos. Mais cedo
ou mais tarde, a Fiocruz vai entregar as primeiras doses de vacina, 3,5
milhões, mas o ritmo da entrega ao longo dos meses seguintes ainda é
desconhecido e não sabemos que fração da população a cadeia de comando
planeja vacinar a cada dia durante 2021. Para vacinar a população ainda
em 2021, é preciso inocular aproximadamente 500 mil pessoas por dia.
Lembre desse número e verifique o progresso a cada dia. O ritmo de
vacinação depende do Ministério da Saúde. O Programa Nacional de
Imunização (PNI) é federal, e nossa sorte é que a vacina da AstraZeneca
não precisa de condições especiais de transporte e armazenamento e,
portanto, se encaixa como uma luva no PNI. Não há desculpa para a
vacinação não ser iniciada rapidamente e executada com velocidade. Se
não houver vacina suficiente, se faltarem seringas, se o controle de
quem foi vacinado falhar, se ela não chegar aos rincões do Brasil, não
existe desculpa. O presidente Bolsonaro optou por instalar um sistema de
comando e controle, tipicamente usado por militares em operações de
guerra. Podemos até argumentar que a luta contra o SARS-CoV-2 é uma
guerra, mas nos sistemas militares o general dá as ordens, os outros
devem obedecer sem questionar, como confirmou ao vivo e em cores o
general que é nosso ministro da Saúde. O que não devemos esquecer é que
num sistema onde as ordens são emitidas por um único líder e seguidas
por todos os outros, a responsabilidade pelo sucesso ou fracasso da
operação recai unicamente sobre o comandante. Assim, qualquer que seja o
resultado do nosso programa de vacinação em 2021, é bom lembrar que a
responsabilidade a partir de agora é de Bolsonaro. Acabou o espaço para
desculpas. (Fernando Reinach/Estadão)
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