MEDIÇÃO DE TERRA

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MEDIÇÃO DE TERRAS

sexta-feira, 25 de setembro de 2020

David Hume cancelado

 



Está em curso uma espécie de eugenia intelectual que conta com a simpatia ou covardia de reitores e professores de prestigiadas universidades internacionais. Bruno Garschagen para a nova edição da revista Oeste:


Descubro escandalizado que o filósofo escocês David Hume começou a ser “cancelado” em sua pátria. Cedendo à pressão de alunos revolucionários incitados pelo Black Lives Matter, a Universidade de Edimburgo, onde o filósofo estudou, substituiu o nome de um dos prédios de “Torre David Hume” para “Torre 40 George Square”. A torpeza não parou por aí: o perfil do filósofo no site da instituição foi apagado.

A justificativa foi que a “visão racista” do filósofo poderia ferir suscetibilidades dos atuais alunos que frequentam o local. Pergunto-me quantos alunos olharam o nome de Hume na placa do prédio na última década e sentiram-se imediatamente incomodados.

Segundo o jornal escocês The National, quem liderou a campanha de coleta de assinaturas que levou ao ato covarde da universidade foi Elizabeth Kathleen Lund, uma jovem norte-americana que faz doutorado em História. Duvido que os pais fundadores da América um dia ousassem imaginar que o país que ajudaram a construir iria, séculos mais tarde, exportar tanta coisa ruim.

No texto que serve de apoio ao abaixo-assinado, Elizabeth começa por descrever as contribuições intelectuais de Hume para, em seguida, dizer que não se pode ignorar o seu racismo expresso numa nota de rodapé do ensaio “Do caráter nacional”, que faz parte do livro Ensaios Morais, Políticos e Literários (Topbooks, 2005).

Na nota, Hume escreveu que suspeitava da inferioridade natural dos negros em relação aos brancos e que “praticamente nunca existiu uma nação civilizada com aquela compleição nem sequer um indivíduo eminente seja na ação, seja na especulação” (p. 344). Ao absurdo da primeira afirmação, junta-se a ignorância da segunda. Como escreveu o jornalista Daniel Johnson no artigo “Cancelling ‘Le Bon David’”, publicado no site Law & Liberty, Hume “estava mal informado sobre as civilizações da África”.

Considerados esses pontos, é ridícula a afirmação da aluna de que “a nota de rodapé de Hume ecoa sentimentos racistas manifestados por meio da eugenia”. E que, junto com a frenologia, foi usada para justificar o colonialismo e a escravidão. Para ela, Hume era racista, eugenista, escravocrata.

Se Elizabeth tivesse lido o livro inteiro, teria chegado ao ensaio “Da população das nações mais antigas”. Nele, Hume condena a escravidão e diz que ela também degrada os senhores de escravos a ponto de eles se tornarem pequenos tiranos. Diz mais:

“A escravidão doméstica é mais cruel e opressiva do que qualquer tipo de submissão civil, seja qual for. […] Os vestígios que se encontram da escravidão doméstica nas colônias americanas e em algumas nações europeias seguramente jamais provocariam o desejo de que ela se tornasse universal” (p. 564).

Naquele mesmo artigo, Daniel Johnson enfatiza precisamente a posição pública de Hume contrária à escravidão num momento em que o movimento abolicionista dava os primeiros passos na Inglaterra e William Wilberforce nem era nascido.

Ao confessar aquilo que não pode ser ocultado, o fato de ser uma aluna branca na Universidade de Edimburgo, Elizabeth arroga para si o papel de representante do que ela chama de “estudantes de cor”. E ao fazer exatamente aquilo que ela diz no texto que não pode, ou seja, falar a respeito do sofrimento sentido pelos “estudantes de cor” que frequentavam o prédio com o nome do filósofo, Elizabeth não apresenta nenhuma pesquisa que fundamente a sua preocupação. Para tentar demonstrar a sua tese, recorre exclusivamente ao depoimento de uma única colega.

A história começa a fazer sentido quando se descobre que o depoimento foi dado por outra estrangeira, Martine Irakoze, que integra o BlackED Movement. O grupo foi criado por alunos após o assassinato de George Floyd por um policial nos Estados Unidos para “combater o racismo no câmpus” e pressionar a reitoria a apoiar os estudantes negros.

Nascida no Burundi, Martine é aluna do curso de Direito Internacional e Relações Internacionais. O que ela diz representa à perfeição a perspectiva ideológica que fundamenta a ação que expliquei no artigo “Os destruidores da história”. A coisa é tão absurda que a estudante alerta para o risco de a universidade continuar a celebrar o filósofo mesmo sabendo de “sua visão racista dos estudantes negros”. Como, afinal, Hume diria algo a respeito de estudantes negros que não existiam em sua época?

Em seu delírio, Martine afirma que “glorificar a intolerância de Hume significa apoiar a supremacia branca e a ideia do racismo científico que foi amplamente difundida para justificar a escravidão e a colonização”. A relação de causalidade que ela tenta estabelecer é tão odiosa quanto a afirmação segundo a qual “scholars como Hume ajudaram a justificar [o racismo científico] por meio da eugenia” e a comparação que ela faz entre Hume e Adolf Hitler. “Não precisamos de edifícios e estátuas com o nome de Hitler em Berlim para aprendermos sobre ele.” Inacreditável.

Esse tipo de pensamento e atitude só revela o grau de estupidez mental de certa juventude que está transformando universidades mundo afora em ambientes hostis, antiacadêmicos, anti-intelectuais, anticientíficos.

A posição de Hume em relação ao tema não deixa dúvida a respeito do que ele pensava sobre os negros. É indefensável e deve ser analisada, criticada e contextualizada. O problema está em reduzir um filósofo de sua grandeza e importância a um supremacista branco, algo tão inadmissível quanto tentar apagá-lo da história, mesmo que, em seu texto, Elizabeth diga não ser esse o seu objetivo.

Não há nenhum problema em identificar e analisar criticamente o que pensavam os grandes da filosofia, das artes, da literatura, da política. Entretanto, não é esse o ponto. O que se pretende é instituir um tribunal de exceção para condenar sumariamente figuras históricas. O que se quer é usar os vícios para anular as virtudes e passar uma borracha no passado, substituindo nomes de prédios, destruindo estátuas, vandalizando monumentos, retirando-os dos currículos escolares, apagando dos livros os feitos de personagens de áreas distintas do saber humano. Trata-se de uma espécie de eugenia intelectual que conta com a simpatia ou covardia de reitores e professores de prestigiadas universidades internacionais. Tanto mais grave que isso aconteça na Escócia e com David Hume, respectivamente, berço e protagonista do Iluminismo escocês.

Os grandes vultos históricos devem ser preservados com seus erros e acertos para que, no presente, seus acertos sejam aprimorados e seus erros, corrigidos. Cancelá-los só destrói o passado e impede essa coisa fundamental que é o aprendizado.
 
BLOG   ORLANDO  TAMBOSI

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