Está em curso uma espécie de eugenia intelectual que conta com a simpatia ou covardia de reitores e professores de prestigiadas universidades internacionais. Bruno Garschagen para a nova edição da revista Oeste:
Descubro
escandalizado que o filósofo escocês David Hume começou a ser
“cancelado” em sua pátria. Cedendo à pressão de alunos revolucionários
incitados pelo Black Lives Matter, a Universidade de Edimburgo, onde o
filósofo estudou, substituiu o nome de um dos prédios de “Torre David
Hume” para “Torre 40 George Square”. A torpeza não parou por aí: o
perfil do filósofo no site da instituição foi apagado.
A
justificativa foi que a “visão racista” do filósofo poderia ferir
suscetibilidades dos atuais alunos que frequentam o local. Pergunto-me
quantos alunos olharam o nome de Hume na placa do prédio na última
década e sentiram-se imediatamente incomodados.
Segundo
o jornal escocês The National, quem liderou a campanha de coleta de
assinaturas que levou ao ato covarde da universidade foi Elizabeth
Kathleen Lund, uma jovem norte-americana que faz doutorado em História.
Duvido que os pais fundadores da América um dia ousassem imaginar que o
país que ajudaram a construir iria, séculos mais tarde, exportar tanta
coisa ruim.
No
texto que serve de apoio ao abaixo-assinado, Elizabeth começa por
descrever as contribuições intelectuais de Hume para, em seguida, dizer
que não se pode ignorar o seu racismo expresso numa nota de rodapé do
ensaio “Do caráter nacional”, que faz parte do livro Ensaios Morais,
Políticos e Literários (Topbooks, 2005).
Na
nota, Hume escreveu que suspeitava da inferioridade natural dos negros
em relação aos brancos e que “praticamente nunca existiu uma nação
civilizada com aquela compleição nem sequer um indivíduo eminente seja
na ação, seja na especulação” (p. 344). Ao absurdo da primeira
afirmação, junta-se a ignorância da segunda. Como escreveu o jornalista
Daniel Johnson no artigo “Cancelling ‘Le Bon David’”, publicado no site
Law & Liberty, Hume “estava mal informado sobre as civilizações da
África”.
Considerados
esses pontos, é ridícula a afirmação da aluna de que “a nota de rodapé
de Hume ecoa sentimentos racistas manifestados por meio da eugenia”. E
que, junto com a frenologia, foi usada para justificar o colonialismo e a
escravidão. Para ela, Hume era racista, eugenista, escravocrata.
Se
Elizabeth tivesse lido o livro inteiro, teria chegado ao ensaio “Da
população das nações mais antigas”. Nele, Hume condena a escravidão e
diz que ela também degrada os senhores de escravos a ponto de eles se
tornarem pequenos tiranos. Diz mais:
“A
escravidão doméstica é mais cruel e opressiva do que qualquer tipo de
submissão civil, seja qual for. […] Os vestígios que se encontram da
escravidão doméstica nas colônias americanas e em algumas nações
europeias seguramente jamais provocariam o desejo de que ela se tornasse
universal” (p. 564).
Naquele
mesmo artigo, Daniel Johnson enfatiza precisamente a posição pública de
Hume contrária à escravidão num momento em que o movimento
abolicionista dava os primeiros passos na Inglaterra e William
Wilberforce nem era nascido.
Ao
confessar aquilo que não pode ser ocultado, o fato de ser uma aluna
branca na Universidade de Edimburgo, Elizabeth arroga para si o papel de
representante do que ela chama de “estudantes de cor”. E ao fazer
exatamente aquilo que ela diz no texto que não pode, ou seja, falar a
respeito do sofrimento sentido pelos “estudantes de cor” que
frequentavam o prédio com o nome do filósofo, Elizabeth não apresenta
nenhuma pesquisa que fundamente a sua preocupação. Para tentar
demonstrar a sua tese, recorre exclusivamente ao depoimento de uma única
colega.
A
história começa a fazer sentido quando se descobre que o depoimento foi
dado por outra estrangeira, Martine Irakoze, que integra o BlackED
Movement. O grupo foi criado por alunos após o assassinato de George
Floyd por um policial nos Estados Unidos para “combater o racismo no
câmpus” e pressionar a reitoria a apoiar os estudantes negros.
Nascida
no Burundi, Martine é aluna do curso de Direito Internacional e
Relações Internacionais. O que ela diz representa à perfeição a
perspectiva ideológica que fundamenta a ação que expliquei no artigo “Os destruidores da história”.
A coisa é tão absurda que a estudante alerta para o risco de a
universidade continuar a celebrar o filósofo mesmo sabendo de “sua visão
racista dos estudantes negros”. Como, afinal, Hume diria algo a
respeito de estudantes negros que não existiam em sua época?
Em
seu delírio, Martine afirma que “glorificar a intolerância de Hume
significa apoiar a supremacia branca e a ideia do racismo científico que
foi amplamente difundida para justificar a escravidão e a colonização”.
A relação de causalidade que ela tenta estabelecer é tão odiosa quanto a
afirmação segundo a qual “scholars como Hume ajudaram a justificar [o
racismo científico] por meio da eugenia” e a comparação que ela faz
entre Hume e Adolf Hitler. “Não precisamos de edifícios e estátuas com o
nome de Hitler em Berlim para aprendermos sobre ele.” Inacreditável.
Esse
tipo de pensamento e atitude só revela o grau de estupidez mental de
certa juventude que está transformando universidades mundo afora em
ambientes hostis, antiacadêmicos, anti-intelectuais, anticientíficos.
A
posição de Hume em relação ao tema não deixa dúvida a respeito do que
ele pensava sobre os negros. É indefensável e deve ser analisada,
criticada e contextualizada. O problema está em reduzir um filósofo de
sua grandeza e importância a um supremacista branco, algo tão
inadmissível quanto tentar apagá-lo da história, mesmo que, em seu
texto, Elizabeth diga não ser esse o seu objetivo.
Não
há nenhum problema em identificar e analisar criticamente o que
pensavam os grandes da filosofia, das artes, da literatura, da política.
Entretanto, não é esse o ponto. O que se pretende é instituir um
tribunal de exceção para condenar sumariamente figuras históricas. O que
se quer é usar os vícios para anular as virtudes e passar uma borracha
no passado, substituindo nomes de prédios, destruindo estátuas,
vandalizando monumentos, retirando-os dos currículos escolares, apagando
dos livros os feitos de personagens de áreas distintas do saber humano.
Trata-se de uma espécie de eugenia intelectual que conta com a simpatia
ou covardia de reitores e professores de prestigiadas universidades
internacionais. Tanto mais grave que isso aconteça na Escócia e com
David Hume, respectivamente, berço e protagonista do Iluminismo escocês.
Os
grandes vultos históricos devem ser preservados com seus erros e
acertos para que, no presente, seus acertos sejam aprimorados e seus
erros, corrigidos. Cancelá-los só destrói o passado e impede essa coisa
fundamental que é o aprendizado.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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