O livro de Mandetta é uma prova da ineficiência do Estado, das limitações e da vaidade sem fim dos homens públicos. A crônica de Paulo Polzonoff Jr, via Gazeta:
O
ex-ministro da saúde e ortopedista pediátrico Luiz Henrique Mandetta
vai estrear na literatura com “Um Paciente Chamado Brasil”. Nas 228
páginas do livro escrito e publicado às pressas, enquanto ainda é
possível tirar algum proveito da pandemia de Covid-19, Mandetta promete
contar os bastidores da luta contra o coronavírus.
Como
o livro será lançado no dia 8 de outubro e neste dia, se tudo der
certo, estarei praticando stand up paddle em alguma ilha de Bora Bora
(não sem antes dar uma passadinha em Nauru), ficarei devendo ao leitor
uma análise mais detida sobre este livro que já tem seu lugar reservado
no panteão das maiores obras da Literatura de Gabinete do nosso tempo –
ao lado da involuntariamente hilária autobiografia do ex-Procurador
Geral da República Rodrigo Janot.
Num
esforço de reportagem, usei todos os meus dotes de hacker e andei pelos
becos mais sujos e escuros que você pode imaginar na deep web para
encontrar uma cópia de “Um Paciente Chamado Brasil”. Sem sucesso. Só me
resta, pois, analisar o livro pela capa, pela sinopse e pelas primeiras
páginas disponibilizadas pela Amazon. Anos de experiência no mercado
editorial me qualificaram para, em casos bastante específicos, usar
essas três ferramentas para prever o que algum desavisado poderia chamar
de “conteúdo”.
Pois
a capa minimalista de “Um Paciente Chamado Brasil” (um título de
criatividade mais escassa do que esparadrapo no SUS) é toda em azul, com
apenas uma linha vermelha ascendente. Supostamente a linha mostra os
casos de Covid-19 no Brasil depois que Mandetta foi demitido. Ou vai ver
ela foi tirada de um daqueles gráficos que mostrava a ascensão de
Fernando Haddad nas pesquisas eleitorais de 2016. A linha pode ainda
fazer referência ao ECG contínuo nos monitores de UTI que indicam se o
paciente tem ou não batimentos cardíacos. A julgar pela capa, pois, o
paciente vai bem, obrigado.
E
aí temos a sinopse. Fico imaginando como seria o mesmo texto caso o
presidente Jair Bolsonaro não tivesse demitido o então ministro da
Saúde. Se Mandetta até hoje estivesse administrando a pandemia. Aí
seguramente desapareceria o tom quase que de beatificação, substituído
por um tom crítico, duro, contundente, quando não francamente agressivo.
Talvez um redator todo indignado até escrevesse a palavra “genocida”
ali.
Pois
a sinopse, no tom cartorário-eleitoral que sem querer mostra no que se
transformou o mercado editorial brasileiro, começa dizendo que “Sua [do
então ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta] defesa dos protocolos
científicos no combate à pandemia e a transparência na comunicação com a
sociedade acabaram desencadeando uma crise no governo federal”. Por
“protocolos científicos” o redator está se referindo ao lockdown que em
nenhum país do mundo se mostrou eficiente? E será que “transparência na
comunicação” é uma referência às coletivas catastrofistas, mas com o
inegável sorriso de candidato a qualquer coisa do ex-ministro?
O
restante da sinopse prova que o livro entrega o que se espera dele
mesmo: política disfarçada de jornada do herói ou coisa parecida. Tem
lugar até para um “os cerca de cem dias” na sinopse - o que leva a crer
que precisão numérica não é o forte da narrativa. E, como não poderia
deixar de ser, a sinopse diz o livro contará como Mandetta, munido de
“ciência, ciência, ciência”, enfrentou a política, “a questão da
cloroquina, o isolamento social e o negacionismo do presidente da
República”.
Como
a “questão da cloroquina” não é ponto pacífico na comunidade científica
e “negacionismo” é só uma palavra inventada para hostilizar os que não
seguem a ortodoxia da vez, deposito minhas esperanças no que o livro
promete em seguida, de acordo com a sinopse: “os caminhos da compra e
distribuição de insumos para profissionais da saúde e hospitais”. Para
os guarda-livros (!), deve ser uma leitura interessantíssima.
O
livro começa com uma frase enigmática logo na introdução: “Minha vida é
marcada pela luta contra a morte, em sintonia com a vida – compreendi
esse caminho desde muito cedo”. Eu li e reli. Li para meu editor, para
minha mulher, desci e li para o porteiro e, não satisfeito, mandei a
frase para um grupo de médicos para que eles me explicassem. Ninguém
entendeu o que Mandetta quis dizer com isso. (Se você entendeu, sinta-se
à vontade para explicar).
Logo
adiante, um Mandetta que parece um James Bond em Davos narra os
primórdios da pandemia e até como agentes de segurança fizeram uma
varredura em seu hotel em busca de explosivos. Porque todo livro tem que
ter esse tipo de tensão, não é mesmo? Há ainda, logo nas primeiras
páginas, rapapés à Organização Mundial da Saúde, uma sequência de nomes
de burocratas desconhecidos, cifras que não dizem nada, o deslumbramento
diante da possibilidade de um sul-mato-grossense se encontrar com o
casal Bill e Melinda Gates, frases como “pessoas não são mercadorias” e
lições como esta pérola: “(...) a Davos da empresa tradicional, do
banqueiro, do capitalismo convencional que a gente conhece está tendo
que conviver com uma nova geração com outros valores e competências. E
esses dois mundos não dialogam, estão em momentos muito díspares”.
Mandetta
quer que você sinta saudade dele. Quer que você o veja como o homem que
poderia ter poupado o Brasil da tragédia do coronavírus – ainda que
nenhum outro país do mundo tenha conseguido isso. E, para tanto,
Mandetta escreveu um livro (ou melhor, narrou suas peripécias pelos
corredores da burocracia médica mundial ao repórter da Folha de S. Paulo
Walter Nunes). Sem querer, contudo, seu testemunho é uma prova da
ineficiência do Estado, das limitações e da vaidade sem fim dos homens
públicos.
Há quem goste. Eu prefiro ler bula de hidroxicloroquina.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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