A proibição de carreatas, em que o risco de contágio é mínimo ou
inexistente, é uma perigosa violação das liberdades de expressão e de
reunião previstas na Constituição Federal. Editorial da Gazeta:
Uma parcela da população que defende o chamado “isolamento vertical”,
com o relaxamento imediato ou gradual (desde que iniciado o quanto
antes) das medidas restritivas ordenadas por governos estaduais e
municipais para conter a disseminação do coronavírus, resolveu se
organizar e promover manifestações pleiteando a revisão das diretrizes
de governadores e prefeitos. No entanto, uma série de decisões judiciais
está proibindo esse tipo de protestos, incluindo até mesmo carreatas,
muitas das quais tiveram de ser desmarcadas, com perigosas consequências
para a liberdade de expressão em nome de um suposto zelo pela saúde
pública. No Maranhão e em Goiás, por exemplo, a Justiça proibiu
quaisquer manifestações, enquanto em São Paulo e Rio de Janeiro as
decisões tinham como alvo eventos específicos que vinham sendo
organizados pelas mídias sociais.
Por mais que, em nenhum dos casos em pauta, os magistrados tenham
invocado o objetivo das manifestações, e sim as circunstâncias em que
elas se dão, não custa nada recordar que o poder público jamais poderia
coibir os protestos simplesmente por pedirem a reabertura dos
estabelecimentos comerciais e industriais. Não era objetivo dos
organizadores incentivar empresários a levantar as portas em desafio às
determinações estaduais ou municipais, e sim pressionar prefeitos e
governadores a rever seus decretos e estabelecer o isolamento vertical.
Um paralelo pode ser feito com um caso emblemático que chegou até o
Supremo Tribunal Federal: o da Marcha da Maconha. Esse tipo de
manifestação tinha como objetivo protestar em favor da mudança nas leis
que tratam da posse, uso e comércio da droga – os próprios organizadores
pediam aos participantes que não levassem drogas ao evento, ressaltando
que não pretendiam fazer apologia ao uso da maconha, nem a qualquer
atividade criminosa. Em 2011, o STF decidiu pela legalidade desse tipo
de manifestação, derrubando decisões de instâncias inferiores que vinham
proibindo as Marchas da Maconha havia alguns anos. Em resumo: pedir a
revisão de leis ou determinações estatais é diferente da apologia ao
crime ou ao descumprimento de medida do gestor público; esta pode ser
coibida pelo Estado, mas aquela não, independentemente da opinião que
qualquer um de nós ou os magistrados tenham sobre a maconha, o
isolamento vertical ou qualquer outro tema que venha a ser pauta de
reivindicação popular.
Recordado este princípio, resta-nos agora analisar o caso específico
das manifestações pela reabertura dos estabelecimentos durante a
quarentena do coronavírus, e a pergunta que precisa ser feita para
analisar o acerto ou o erro das decisões judiciais é: que tipo de
protesto estava sendo convocado? Várias cidades e estados determinaram,
além do fechamento dos estabelecimentos não essenciais, a suspensão de
eventos que resultassem em aglomeração de pessoas, dado o elevado risco
de contágio pelo coronavírus. Assim, um protesto que procurasse reunir
manifestantes em algum ponto específico de determinada cidade estaria
ocorrendo em descumprimento às restrições impostas pelo poder público,
justificando uma intervenção judicial em face do risco à saúde pública.
No entanto, a maioria dos atos que foram alvo das recentes medidas
judiciais consiste em carreatas, a forma de protesto escolhida pelos
organizadores justamente porque não causa aglomerações e, desde que não
haja interação entre os ocupantes de veículos diferentes, praticamente
elimina os riscos de contágio. Aqui já não cabe falar em ameaça à saúde
pública nem em desrespeito a determinação estadual ou municipal, motivo
pelo qual a proibição desse tipo de manifestação – sempre que não
resulte ou seja acompanhada de aglomeração de pessoas fora dos veículos,
há de se reforçar – é uma perigosa violação das liberdades de expressão
e de reunião previstas nos incisos IV e XVI do artigo 5.º da
Constituição Federal.
Como já lembramos neste espaço por ocasião dos bloqueios
estabelecidos por governos estaduais e municipais em rodovias e demais
acessos, há motivos mais que razoáveis para medidas que preservem a
saúde pública, mas qualquer restrição a liberdades fundamentais só pode
ser adotada em circunstâncias muito específicas. O excesso de zelo na
tentativa de evitar mais contaminações e mortes traz consigo a tentação
de abolir, ainda que temporariamente, essas liberdades. Não é deixando o
vírus do arbítrio circular livremente que conseguiremos vencer o
coronavírus.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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