Johnson é um animal político com estofo intelectual; Trump é um animal
empresarial que entrou para a política. Bruno Garschagen, via Oeste:
O comentário político atual há poucas afirmações tão idiotas quanto
as que comparam o primeiro-ministro da Inglaterra, Boris Johnson, com o
presidente dos Estados Unidos, Donald Trump. Chamar Johnson de o “Trump
britânico” é burrice, ignorância, estupidez.
O paralelo é tão preguiçoso quanto errado. Johnson é um conservador
de berço, formado na Universidade de Oxford, debatedor treinado na
prestigiosa escola de debates da Oxford Union, herdeiro da melhor
tradição política britânica com uma carreira no jornalismo que precede
seu ingresso na política. Trump é um homem prático, um negociador nato
que construiu uma controversa e bem-sucedida carreira na iniciativa
privada, um empreendedor sem vínculos diretos com a política, um showman
que tem (e usa) como poucos o seu talento para a comunicação — talento
lapidado em programas de televisão.
A mais óbvia é Winston Churchill, sobre quem escreveu uma biografia, O
Fator Churchill, na qual se projeta na história do biografado. O
paralelo com Churchill é evidente: ambos são escritores, jornalistas,
políticos com physique du rôle similar, de origens aristocráticas
explícitas nos nomes (Alexander Boris de Pfeffel Johnson e Winston
Spencer-Churchill) e formação inicial em escolas privadas de elite
(Churchill em Harrow; Johnson em Eton).
Há outras semelhanças: a mãe de Churchill era americana, nascida no
Brooklyn, enquanto Johnson nasceu na cidade de Nova York quando seus
pais lá residiam; ambos são oradores destacados e homens destemidos que
assumiram o governo em momentos delicados da história do Reino Unido.
Mais: ambos são confessos herdeiros da civilização Ocidental e
orgulhosos filhos da tradição histórica, literária e política britânica.
Se Churchill, como eu disse, é a influência mais óbvia, a menos
conhecida internacionalmente — e talvez mais importante — é Benjamin
Disraeli. Escritor, dono de inteligência refinada, de personalidade
independente, Disraeli entrou na vida política para gravar seu nome na
história do Reino Unido. Foi um dos mais destacados políticos tories e
um dos grandes primeiro-ministros do país.
Seu início na vida política não foi fácil. Também pesava o fato de
ser judeu. Sua personalidade e atividade literária provocaram
desconfiança entre os colegas tories. Lord Salisbury, por exemplo, o
chamou de “aventureiro”, como mostrou Robin Harris em seu livro The
Conservatives – A History.
Escritor conhecido, foi eleito pela primeira vez para o Parlamento em
julho de 1837. Em 1845, publicou o romance político Sybil; or, The Two
Nations. As “duas nações” do título eram uma referência à brutal
disparidade econômica e social entre os privilegiados da classe a que
pertencia e os trabalhadores que viviam em condições precárias. A
mensagem era clara: os industriais que usufruíam os benefícios da
propriedade privada deveriam assumir as suas responsabilidades na
relação com os trabalhadores. Logo, era preciso resolver o problema
agregando todos numa única nação sob uma política conservadora. Assim
nasceu o One Nation Conservatism.
O sentido de dever fez Disraeli desenvolver uma agenda política que
tentava adaptar o conservadorismo às novas condições sociais do país.
Foi assim nos anos de Parlamento e nas duas vezes em que foi
primeiro-ministro. Isso implicava, também, em aprimorar por meio da lei a
relação entre empresários e trabalhadores numa época em que a revolução
industrial dava seus primeiros passos, os donos das empresas não sabiam
a melhor maneira de agir e as condições de trabalho eram terríveis.
Essa atitude paternalista era própria da aristocracia conservadora da
época, que entendia a ajuda aos pobres como uma obrigação moral. Antes
de Disraeli, explicou Anthony Quinton em seu livro The Politics of
Imperfection, os intelectuais conservadores não davam a devida atenção
aos problemas sociais provocados pela sociedade industrial emergente.
Mas, no afã de querer beneficiar os trabalhadores, concedeu
privilégios a sindicatos e patrocinou uma legislação trabalhista que
tinha vários equívocos, que só foram corrigidos no século XX durante o
governo de Margaret Thatcher. Apesar disso, segundo Quinton, a maioria
das ações políticas de Disraeli respeitava o “princípio conservador
segundo o qual as funções do governo devem estar confinadas em certos
limites”.
Como fundamentos do One Nation Conservatism de Disraeli residiam a
postura contrária à ideia de direitos abstratos do homem (influência de
Edmund Burke), à versão utilitária do racionalismo liberal e à própria
idealização da política. O seu conservadorismo tradicional estava
ancorado nos valores e princípios do povo britânico, na nação, na
história, na cultura, na defesa da soberania e do território. É esse o
legado político de Boris Johnson, que também explica o seu apoio ao
Brexit, a sua visão política e a sua agenda reformista.
Durante a vitoriosa campanha eleitoral e no discurso de posse em
2019, inclusive, Johnson fez questão de dizer que faria um governo
inspirado na ideia do One Nation Conservatism. Ao contrário de sua
antecessora Theresa May, que disse o mesmo ao assumir o posto em 2016, o
primeiro-ministro o tem feito de fato, principalmente neste momento em
que a luta contra o coronavírus vem unindo o país assim como ocorreu na
Segunda Guerra sob a liderança de Churchill.
Johnson é um animal político com estofo intelectual; Trump é um
animal empresarial que entrou para a política. Aquilo que ambos têm em
comum — a começar pela ambição de restaurar a grandiosidade de seus
países —, não o tornam iguais. Uma cadeira não é uma mesa só porque
também tem quatro pés.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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