sábado, 4 de abril de 2020

Boris Johnson, um Trump britânico?


Johnson é um animal político com estofo intelectual; Trump é um animal empresarial que entrou para a política. Bruno Garschagen, via Oeste:

O comentário político atual há poucas afirmações tão idiotas quanto as que comparam o primeiro-ministro da Inglaterra, Boris Johnson, com o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump. Chamar Johnson de o “Trump britânico” é burrice, ignorância, estupidez.

O paralelo é tão preguiçoso quanto errado. Johnson é um conservador de berço, formado na Universidade de Oxford, debatedor treinado na prestigiosa escola de debates da Oxford Union, herdeiro da melhor tradição política britânica com uma carreira no jornalismo que precede seu ingresso na política. Trump é um homem prático, um negociador nato que construiu uma controversa e bem-sucedida carreira na iniciativa privada, um empreendedor sem vínculos diretos com a política, um showman que tem (e usa) como poucos o seu talento para a comunicação — talento lapidado em programas de televisão.
A mais óbvia é Winston Churchill, sobre quem escreveu uma biografia, O Fator Churchill, na qual se projeta na história do biografado. O paralelo com Churchill é evidente: ambos são escritores, jornalistas, políticos com physique du rôle similar, de origens aristocráticas explícitas nos nomes (Alexander Boris de Pfeffel Johnson e Winston Spencer-Churchill) e formação inicial em escolas privadas de elite (Churchill em Harrow; Johnson em Eton).

Há outras semelhanças: a mãe de Churchill era americana, nascida no Brooklyn, enquanto Johnson nasceu na cidade de Nova York quando seus pais lá residiam; ambos são oradores destacados e homens destemidos que assumiram o governo em momentos delicados da história do Reino Unido. Mais: ambos são confessos herdeiros da civilização Ocidental e orgulhosos filhos da tradição histórica, literária e política britânica.

Se Churchill, como eu disse, é a influência mais óbvia, a menos conhecida internacionalmente — e talvez mais importante — é Benjamin Disraeli. Escritor, dono de inteligência refinada, de personalidade independente, Disraeli entrou na vida política para gravar seu nome na história do Reino Unido. Foi um dos mais destacados políticos tories e um dos grandes primeiro-ministros do país.

Seu início na vida política não foi fácil. Também pesava o fato de ser judeu. Sua personalidade e atividade literária provocaram desconfiança entre os colegas tories. Lord Salisbury, por exemplo, o chamou de “aventureiro”, como mostrou Robin Harris em seu livro The Conservatives – A History.

Escritor conhecido, foi eleito pela primeira vez para o Parlamento em julho de 1837. Em 1845, publicou o romance político Sybil; or, The Two Nations. As “duas nações” do título eram uma referência à brutal disparidade econômica e social entre os privilegiados da classe a que pertencia e os trabalhadores que viviam em condições precárias. A mensagem era clara: os industriais que usufruíam os benefícios da propriedade privada deveriam assumir as suas responsabilidades na relação com os trabalhadores. Logo, era preciso resolver o problema agregando todos numa única nação sob uma política conservadora. Assim nasceu o One Nation Conservatism.

O sentido de dever fez Disraeli desenvolver uma agenda política que tentava adaptar o conservadorismo às novas condições sociais do país. Foi assim nos anos de Parlamento e nas duas vezes em que foi primeiro-ministro. Isso implicava, também, em aprimorar por meio da lei a relação entre empresários e trabalhadores numa época em que a revolução industrial dava seus primeiros passos, os donos das empresas não sabiam a melhor maneira de agir e as condições de trabalho eram terríveis.

Essa atitude paternalista era própria da aristocracia conservadora da época, que entendia a ajuda aos pobres como uma obrigação moral. Antes de Disraeli, explicou Anthony Quinton em seu livro The Politics of Imperfection, os intelectuais conservadores não davam a devida atenção aos problemas sociais provocados pela sociedade industrial emergente.

Mas, no afã de querer beneficiar os trabalhadores, concedeu privilégios a sindicatos e patrocinou uma legislação trabalhista que tinha vários equívocos, que só foram corrigidos no século XX durante o governo de Margaret Thatcher. Apesar disso, segundo Quinton, a maioria das ações políticas de Disraeli respeitava o “princípio conservador segundo o qual as funções do governo devem estar confinadas em certos limites”.

Como fundamentos do One Nation Conservatism de Disraeli residiam a postura contrária à ideia de direitos abstratos do homem (influência de Edmund Burke), à versão utilitária do racionalismo liberal e à própria idealização da política. O seu conservadorismo tradicional estava ancorado nos valores e princípios do povo britânico, na nação, na história, na cultura, na defesa da soberania e do território. É esse o legado político de Boris Johnson, que também explica o seu apoio ao Brexit, a sua visão política e a sua agenda reformista.

Durante a vitoriosa campanha eleitoral e no discurso de posse em 2019, inclusive, Johnson fez questão de dizer que faria um governo inspirado na ideia do One Nation Conservatism. Ao contrário de sua antecessora Theresa May, que disse o mesmo ao assumir o posto em 2016, o primeiro-ministro o tem feito de fato, principalmente neste momento em que a luta contra o coronavírus vem unindo o país assim como ocorreu na Segunda Guerra sob a liderança de Churchill.

Johnson é um animal político com estofo intelectual; Trump é um animal empresarial que entrou para a política. Aquilo que ambos têm em comum — a começar pela ambição de restaurar a grandiosidade de seus países —, não o tornam iguais. Uma cadeira não é uma mesa só porque também tem quatro pés.
 
BLOG ORLANDO TAMBOSI

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