Fabrizio Tonello
La Repubblica
Thomas Piketty certamente não é um estranho entre os economistas: antes de completar 30 anos, ele já havia escrito uma análise massiva da formação e distribuição da riqueza na França (“Le haut revenus en France au XX siècle, 2001”). Uma década de trabalho o levou a publicar “Capital no século XXI”, 696 páginas cheias de gráficos e tabelas, que não eram apenas um best-seller na França e nos Estados Unidos, mas foram traduzidas para 40 idiomas e até hoje vendeu mais de dois milhões e meio de cópias.
Agora, o “jovem” economista francês (48 anos) tenta novamente com “Capital et Idéologie”, que tem 1088 páginas e está nas livrarias de Paris (a edição em inglês será lançada em 2020, enquanto a italiana ainda não foi anunciada).
FAZ SUCESSO – No caso da Capital no século XXI, os truques da história zombaram dos especialistas do mercado editorial e fizeram do livro a Bíblia de movimentos como o Occupy Wall Street, influenciando partidos como o Trabalho de Jeremy Corbyn e, agora, até o Fundo Monetário e Banco Mundial. Logo entenderemos se um sucesso análogo fará parte do novo livro, onde Piketty se aventura em um terreno que não é estritamente seu: o da análise de ideologias e da história econômica.
Mas o que a obra “Capital et idéologie” está falando? Ela aborda o fato de que “a desigualdade não é econômica ou tecnológica: é ideológica e política”. Esta é a conclusão mais óbvia da investigação histórica muito ambiciosa apresentada pelo autor, que parte da antiguidade e chega até os dias atuais. Piketty explica:
“O mercado e a concorrência, lucros e salários, capital e dívida, trabalhadores qualificados e não qualificados, trabalhadores locais e estrangeiros, paraísos fiscais e competitividade não existem como tais. São construções sociais e históricas, que dependem inteiramente do sistema jurídico, fiscal, educacional e político escolhido e das categorias [de pensamento] que decidimos adotar”.
JUSTIFICAR… – Como a agricultura existe e não somos mais caçadores-coletores, toda sociedade humana, segundo Piketty, “deve justificar suas desigualdades: precisamos encontrar as razões; caso contrário, todo o edifício político e social poderá entrar em colapso”. Assim, cada era produz discursos e ideologias (mais ou menos contraditórias) que legitimam a desigualdade existente, descrevendo as regras econômicas, sociais e políticas que estruturam o todo como natural.
Nas sociedades contemporâneas, a narrativa dominante é a narrativa “meritocrática” já analisada por Michael Young na década de 1950 em um livro entendido de trás para frente (“Meritocracia”, que era uma sátira, foi recentemente tomado como guia de carreira).
Piketty resume, assim, a narrativa do neoliberalismo: “A desigualdade moderna é correta, porque deriva de um processo aceito livremente, onde todos têm acesso igual ao mercado e à propriedade, e onde todos se beneficiam espontaneamente da acumulação dos mais ricos, que também são os mais empreendedores, os mais merecedores e os mais úteis [para a sociedade] “.
DISPARIDADES – Mas o economista francês salienta que essa teoria é posta no extremo oposto no que diz respeito aos mecanismos de desigualdade nas sociedades pré-modernas, que se baseavam em disparidades rígidas, arbitrárias e muitas vezes despóticas de status.
O problema, afirma o livro, “é que essa grande narrativa proprietária e meritocrática, que teve sua primeira hora de glória no século XIX, após o colapso das sociedades do Antigo Regime, e uma reformulação radical das ambições mundiais após o outono do comunismo soviético e do triunfo do hipercapitalismo, parece hoje cada vez mais frágil”.
DISTRIBUIÇÃO DE RENDA – “Capital et Idéologie” aborda em perspectiva histórica o problema da distribuição da riqueza nas mais diversas sociedades, da Suécia ao Brasil, dos Estados Unidos à Índia, chegando a duas conclusões: primeiro, a desigualdade aumentou fortemente nos últimos anos, essencialmente devido a escolhas políticas dos governos e, sem medidas corretivas, está destinado a aumentar ainda mais:
“Existe em toda parte um abismo entre as proclamações oficiais ‘meritocráticas’ e a realidade que as classes menos favorecidas precisam enfrentar em termos de acesso à educação e à riqueza. O discurso meritocrático e empresarial geralmente parece uma maneira conveniente para aqueles que se beneficiam com o funcionamento do sistema econômico atual justificar qualquer nível de desigualdade, mesmo sem ter que examiná-lo”.
MUITOS DADOS – É uma crítica não nova ao neoliberalismo, com a diferença de que Piketty oferece ao leitor uma quantidade impressionante de dados (dezenas e dezenas de tabelas sempre originais) que integram os 17 capítulos do volume, alertando também contra o perigo de regimes autoritários:
“Se O sistema econômico atual não é profundamente transformado para torná-lo menos desigual, mais justo e mais sustentável, tanto entre os países quanto dentro deles, então o populismo xenofóbico e seus possíveis sucessos eleitorais futuros em breve poderão iniciar o movimento para destruir a globalização hipercapitalista e digital dos anos 1990-2020 “.
Da Hungria ao Brasil, passando pelos Estados Unidos e Itália, o perigo de movimentos autoritários e xenófobos torna urgente lidar radicalmente com a questão da desigualdade: se a esquerda não o fizer, os novos demagogos no poder serão.
PARTIDOS OPERÁRIOS? – Nesse ponto, Piketty introduz uma análise interessante de como os partidos operários (comunistas, social-democratas, trabalhistas) se tornaram “partidos de graduação e pós-graduação” pelo menos desde 1990. Nos principais países europeus e nos Estados Unidos, “a semelhança das trajetórias de votação exige ceticismo quanto às hipóteses de que esses sejam fenômenos estritamente nacionais”. Pelo contrário,
Piketty insiste que existem razões materiais muito antes da crise econômica de 2008 para a remoção da parte mais pobre da população da esquerda: políticas tributárias e escolares em primeiro lugar (a redução de impostos sobre altas rendas, por exemplo, foi traduzida aumento dos impostos indiretos, que afetam os consumidores, penalizando a parte economicamente mais fraca da população).
NOVO SOCIALISMO – Para evitar o risco de regimes autoritários, escreve Piketty “o conhecimento e a história continuam sendo nossos melhores recursos”, pedindo “um novo socialismo participativo para o século XXI”. O autor francês continua otimista: as desigualdades existiram ao longo da história da humanidade, mas, no passado, “as rupturas e os processos revolucionários e políticos que permitiram a redução e transformação das desigualdades passadas foram um grande sucesso, e eles estão na origem de nossas instituições mais preciosas: aquelas que tornaram possível a idéia de progresso humano (sufrágio universal, educação gratuita e obrigatória, seguro de saúde universal, tributação progressiva).
Um sopro necessário de ar fresco em momentos de pessimismo, quando não de desespero, que nos capturam olhando para um cenário político mundial dominado por líderes fascistas como Trump, Erdogan, Bolsonaro e Salvini. (Tradução de Giovanni G. Vieira)
La Repubblica
Thomas Piketty certamente não é um estranho entre os economistas: antes de completar 30 anos, ele já havia escrito uma análise massiva da formação e distribuição da riqueza na França (“Le haut revenus en France au XX siècle, 2001”). Uma década de trabalho o levou a publicar “Capital no século XXI”, 696 páginas cheias de gráficos e tabelas, que não eram apenas um best-seller na França e nos Estados Unidos, mas foram traduzidas para 40 idiomas e até hoje vendeu mais de dois milhões e meio de cópias.
Agora, o “jovem” economista francês (48 anos) tenta novamente com “Capital et Idéologie”, que tem 1088 páginas e está nas livrarias de Paris (a edição em inglês será lançada em 2020, enquanto a italiana ainda não foi anunciada).
FAZ SUCESSO – No caso da Capital no século XXI, os truques da história zombaram dos especialistas do mercado editorial e fizeram do livro a Bíblia de movimentos como o Occupy Wall Street, influenciando partidos como o Trabalho de Jeremy Corbyn e, agora, até o Fundo Monetário e Banco Mundial. Logo entenderemos se um sucesso análogo fará parte do novo livro, onde Piketty se aventura em um terreno que não é estritamente seu: o da análise de ideologias e da história econômica.
Mas o que a obra “Capital et idéologie” está falando? Ela aborda o fato de que “a desigualdade não é econômica ou tecnológica: é ideológica e política”. Esta é a conclusão mais óbvia da investigação histórica muito ambiciosa apresentada pelo autor, que parte da antiguidade e chega até os dias atuais. Piketty explica:
“O mercado e a concorrência, lucros e salários, capital e dívida, trabalhadores qualificados e não qualificados, trabalhadores locais e estrangeiros, paraísos fiscais e competitividade não existem como tais. São construções sociais e históricas, que dependem inteiramente do sistema jurídico, fiscal, educacional e político escolhido e das categorias [de pensamento] que decidimos adotar”.
JUSTIFICAR… – Como a agricultura existe e não somos mais caçadores-coletores, toda sociedade humana, segundo Piketty, “deve justificar suas desigualdades: precisamos encontrar as razões; caso contrário, todo o edifício político e social poderá entrar em colapso”. Assim, cada era produz discursos e ideologias (mais ou menos contraditórias) que legitimam a desigualdade existente, descrevendo as regras econômicas, sociais e políticas que estruturam o todo como natural.
Nas sociedades contemporâneas, a narrativa dominante é a narrativa “meritocrática” já analisada por Michael Young na década de 1950 em um livro entendido de trás para frente (“Meritocracia”, que era uma sátira, foi recentemente tomado como guia de carreira).
Piketty resume, assim, a narrativa do neoliberalismo: “A desigualdade moderna é correta, porque deriva de um processo aceito livremente, onde todos têm acesso igual ao mercado e à propriedade, e onde todos se beneficiam espontaneamente da acumulação dos mais ricos, que também são os mais empreendedores, os mais merecedores e os mais úteis [para a sociedade] “.
DISPARIDADES – Mas o economista francês salienta que essa teoria é posta no extremo oposto no que diz respeito aos mecanismos de desigualdade nas sociedades pré-modernas, que se baseavam em disparidades rígidas, arbitrárias e muitas vezes despóticas de status.
O problema, afirma o livro, “é que essa grande narrativa proprietária e meritocrática, que teve sua primeira hora de glória no século XIX, após o colapso das sociedades do Antigo Regime, e uma reformulação radical das ambições mundiais após o outono do comunismo soviético e do triunfo do hipercapitalismo, parece hoje cada vez mais frágil”.
DISTRIBUIÇÃO DE RENDA – “Capital et Idéologie” aborda em perspectiva histórica o problema da distribuição da riqueza nas mais diversas sociedades, da Suécia ao Brasil, dos Estados Unidos à Índia, chegando a duas conclusões: primeiro, a desigualdade aumentou fortemente nos últimos anos, essencialmente devido a escolhas políticas dos governos e, sem medidas corretivas, está destinado a aumentar ainda mais:
“Existe em toda parte um abismo entre as proclamações oficiais ‘meritocráticas’ e a realidade que as classes menos favorecidas precisam enfrentar em termos de acesso à educação e à riqueza. O discurso meritocrático e empresarial geralmente parece uma maneira conveniente para aqueles que se beneficiam com o funcionamento do sistema econômico atual justificar qualquer nível de desigualdade, mesmo sem ter que examiná-lo”.
MUITOS DADOS – É uma crítica não nova ao neoliberalismo, com a diferença de que Piketty oferece ao leitor uma quantidade impressionante de dados (dezenas e dezenas de tabelas sempre originais) que integram os 17 capítulos do volume, alertando também contra o perigo de regimes autoritários:
“Se O sistema econômico atual não é profundamente transformado para torná-lo menos desigual, mais justo e mais sustentável, tanto entre os países quanto dentro deles, então o populismo xenofóbico e seus possíveis sucessos eleitorais futuros em breve poderão iniciar o movimento para destruir a globalização hipercapitalista e digital dos anos 1990-2020 “.
Da Hungria ao Brasil, passando pelos Estados Unidos e Itália, o perigo de movimentos autoritários e xenófobos torna urgente lidar radicalmente com a questão da desigualdade: se a esquerda não o fizer, os novos demagogos no poder serão.
PARTIDOS OPERÁRIOS? – Nesse ponto, Piketty introduz uma análise interessante de como os partidos operários (comunistas, social-democratas, trabalhistas) se tornaram “partidos de graduação e pós-graduação” pelo menos desde 1990. Nos principais países europeus e nos Estados Unidos, “a semelhança das trajetórias de votação exige ceticismo quanto às hipóteses de que esses sejam fenômenos estritamente nacionais”. Pelo contrário,
Piketty insiste que existem razões materiais muito antes da crise econômica de 2008 para a remoção da parte mais pobre da população da esquerda: políticas tributárias e escolares em primeiro lugar (a redução de impostos sobre altas rendas, por exemplo, foi traduzida aumento dos impostos indiretos, que afetam os consumidores, penalizando a parte economicamente mais fraca da população).
NOVO SOCIALISMO – Para evitar o risco de regimes autoritários, escreve Piketty “o conhecimento e a história continuam sendo nossos melhores recursos”, pedindo “um novo socialismo participativo para o século XXI”. O autor francês continua otimista: as desigualdades existiram ao longo da história da humanidade, mas, no passado, “as rupturas e os processos revolucionários e políticos que permitiram a redução e transformação das desigualdades passadas foram um grande sucesso, e eles estão na origem de nossas instituições mais preciosas: aquelas que tornaram possível a idéia de progresso humano (sufrágio universal, educação gratuita e obrigatória, seguro de saúde universal, tributação progressiva).
Um sopro necessário de ar fresco em momentos de pessimismo, quando não de desespero, que nos capturam olhando para um cenário político mundial dominado por líderes fascistas como Trump, Erdogan, Bolsonaro e Salvini. (Tradução de Giovanni G. Vieira)
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