Ser conservador, no Brasil de hoje, coloca precisamente a questão dos
valores e da tradição a ser preservada. Artigo do professor Denis
Rosenfield, publicado pelo Estadão:
Ser conservador encerra muitas significações, sem que, muitas vezes,
se saiba ao certo do que se está falando. Ultimamente, no País, estamos
presenciando uma onda dita conservadora, como se, com esse termo, uma
acepção de todos conhecida pudesse ser facilmente percebida.
Ser conservador, à maneira de Edmund Burke, significava, na época,
manter as tradições inglesas, a monarquia constitucional e os valores
vigentes, dentre os quais seus preconceitos em relação ao capital
financeiro, aos agiotas e aos judeus, que ele acreditava serem aqueles
similares a estes. Conservar a tradição e os valores pode igualmente
significar aceitação acrítica de toda uma História recebida. Sua
repercussão deveu-se, sobretudo, à sua crítica à Revolução Francesa, à
concepção democrática que então emergia e a seus excessos no Terror, à
concepção jacobina, que terminou se estendendo até o século 20. São
valores históricos que estão assim em pauta.
Ser conservador, no Brasil de hoje, coloca precisamente a questão dos
valores e da tradição a ser preservada. O discurso político é
fortemente contaminado pelo conservadorismo sem que sua acepção seja
definida. Cobra-se apenas que o inimigo seja aquele que não a
compartilha, sem que o compartilhado, contudo, seja explicitado.
Evidentemente, não se pode seriamente cogitar de uma monarquia
constitucional do tipo da inglesa, por mais que dom Pedro II tenha sido
um grande imperador, ímpar em seu tempo. Essa tradição se teria perdido
no período republicano, salvo se entendermos por ser conservador a
restauração da monarquia brasileira. Não é essa, porém, a pauta do atual
governo, centrado na figura de um presidente que procura impor suas
concepções, sem recorrer à História do País.
A pauta conservadora parece residir nos costumes, mas mesmo aí a
questão é controversa, pois diz respeito a qual valor deveria ser
preservado. Os atuais representantes dessa posição se referem
explicitamente à pauta dos valores evangélicos, que correspondem grosso
modo a 30 milhões de crentes. Número certamente expressivo do ponto de
vista eleitoral, mas constitutivo de uma fração da população de 220
milhões de pessoas. Não se pode, portanto, dizer que essa fração
corresponda à totalidade brasileira, por mais importante que seja.
O Brasil tem uma forte tradição libertina, embora esse nome não seja
empregado. O carnaval é o seu maior exemplo. Nessa esteira, o País tem
uma tradição de liberdade sexual, nos últimos tempos até com questões de
gênero e identidade sexual ganhando importância. Manifestações
concernentes à identidade sexual ganham as ruas e contam com o apoio da
população, da mesma maneira que acontece com as manifestações
evangélicas. Poder-se-ia dizer que há uma contradição em termos de
valores que permeiam a atualidade, porém poder-se-ia acrescentar que
ambas fazem parte de um valor maior, o da liberdade de escolha, seja
religiosa, seja sexual.
O que não pode, numa sociedade que se caracteriza como democrática, é
uma das partes considerar a outra como “inimiga”, nas diferentes
acepções desse termo – como “atrasados”, “religiosos”, “perversos”,
“destruidores dos valores” –, conforme a perspectiva que se adote de um
ou outro lado. Nesse sentido, caberia dizer que, se acatarmos a
liberdade de escolha como valor maior, estaríamos adotando uma posição
liberal, por mais que essa pauta esteja hoje limitada a uma discussão em
termos de liberdade econômica, que é somente uma acepção do
liberalismo. A pergunta poderia ser assim colocada: ser conservador
significaria conservar os valores da família como são entendidos na
concepção evangélica? Ser conservador significaria conservar a tradição
libertina? Ser conservador significaria conservar a concepção liberal de
liberdade de escolha?
Se a liberdade de escolha tem vigência na área dos costumes, o mesmo
não acontece na econômica, na qual ela tem imensas dificuldades de ser
implementada. O governo Temer começou um importante ciclo de
liberalização na economia, contrapondo-se à concepção estatizante do
governo Dilma e ao lulopetismo. Nesse aspecto, pode-se dizer que foi
dele o combate primeiro ao “socialismo”. O governo atual segue, com as
maiores dificuldades, a mesma linha, pois a reforma da Previdência nem
foi ainda aprovada, a reforma tributária está sendo conduzida pelo
Senado e pela Câmara e as privatizações e concessões marcham a ritmo
lento. A questão a ser ressaltada reside em que o Brasil não tem uma
tradição liberal, sendo essa a grande inovação.
A tradição em vigor na área econômica é estatizante, presente nos
governos petistas e no período do regime militar, em particular sob a
Presidência Geisel. Contudo, mesmo aqui, uma ressalva deve ser feita, a
de que o governo Castelo Branco se pautou por concepções liberais. A
tradição militar brasileira seria, então, liberal ou estatizante? Tudo
dependeria da perspectiva e de como os militares se reconhecem em sua
própria história. Mais uma amostra da complexidade que se enfrenta ao
definir o que seja um conservador.
No discurso do presidente Jair Bolsonaro na ONU, esse problema foi
agudo. Na verdade, ele não foi conservador ao se afastar da tradição
diplomática brasileira, caracterizada por posturas de tolerância, de
multilateralismo e de negociação, quando mais não seja pelo fato de o
País não dispor de poderio econômico, nem força militar, para impor suas
posições. Ora, em vez de conservar a sua tradição, o presidente optou
por valores ditos conservadores, que são um alinhamento ao governo
Trump. Ressalte-se que tal posição não corresponde à nossa História. O
Brasil, do ponto de vista das relações exteriores, deveria estar baseado
na estrita defesa dos seus interesses, em suas perspectivas
geopolíticas de poder, e não numa cruzada por valores conservadores,
seja lá o que estes signifiquem.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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