Vivemos numa situação esquizofrênica em que o plano do discurso e o
plano da realidade são quase perfeitamente incompatíveis. Tudo é
desfasamento e incoincidência. Artigo do professor Paulo Tunhas,
retornando de férias, via Observador:
Que saiba, há duas óperas escritas por compositores célebres que têm
por tema a história de Portugal. Donizetti escreveu um Dom Sébastien,
Roi du Portugal. Foi a sua última ópera. Depois enlouqueceu e foi
internado num asilo. Meyerbeer compôs L’Africaine (sobre Vasco da Gama).
Também foi a sua última ópera. Morreu subitamente um dia a seguir ter
completado a cópia da partitura. Algo me diz que há mais do que
coincidência nisto. É verdade que a última ópera de Rossini foi sobre um
herói suíço. Mas foi a última porque já estava rico e se queria dedicar
à culinária e outros prazeres. Viveu ainda muito tempo. Não, Portugal é
mesmo capaz de dar azar. No fundo, não há ninguém que não pense, por
uma vez ou outra, que Portugal é um azar.
Hoje em dia, pelo menos, tende a sê-lo. Vivemos numa situação
esquizofrénica em que o plano do discurso e o plano da realidade são
quase perfeitamente incompatíveis. E, como temos de viver em contacto
com os dois, a não ser que, por amor à natureza ou outra razão, nos
façamos eremitas numa montanha, a vida é toda ela, por um lado, ordem
feita de expectativas satisfeitas, e toda ela, por outro lado, desordem
que interdita sequer a formulação consistente de expectativas. Tudo é
desfasamento e incoincidência.
Comecemos pela desordem, isto é, pela realidade. Não há dia em que
não ouçamos novas descobertas sobre um mundo subterrâneo composto por
gente que anda à luz do dia e que se dedica alegremente à corrupção sob
uma qualquer das suas mais variadas formas. O caso de Tancos, no seu
cómico intrínseco, envolveu várias figuras eminentes, como o ex-ministro
Azeredo Lopes, e parece destinado a permanecer o mais ridículo mistério
da democracia. Há agora o caso das golas da Protecção Civil, produzidas
pela empresa “Foxtrot Aventura”, um nome que é todo um programa, que,
não fosse o trágico dos fogos, quase seria tão cómico como o das armas
de Tancos. De qualquer maneira, se as pessoas pensavam que podiam tomar
as golas como protecção – não pensem. Era só para “sensibilizar”. O
ministro da Administração Interna, também por causa dos fogos e também
para “sensibilizar”, insulta o presidente da câmara de Mação. O SNS está
um caos inominável e a ministra da Saúde trata os enfermeiros, os
médicos e os doentes como inimigos pessoais. E há os transportes, e os
cartões de cidadão e tudo o resto para o qual não tenho espaço nem
paciência aqui. Como formular expectativas e fazer planos neste mundo? É
todo ele um novelo cuja ordem por inteiro nos escapa.
Isto no plano da realidade, porque, se passarmos para o plano do
discurso, vivemos num modelo de ordem e harmonia, uma ordem e uma
harmonia que prometem, de resto, aumentar no futuro em excelência e
perfeição. Onde há dissonâncias, elas desaparecerão. O Prédio Coutinho
não satisfaz esteticamente? É pôr de lá para fora os moradores e arrasar
aquilo. Os moradores que se lixem. Tudo vai pelo melhor. E se, por
acaso, algo vai mal, a receita é certa, inflexível e infalível.
Um exemplo. Um enorme cartaz do Bloco de Esquerda diz: “Não há plano
B. Nem um grau a mais. Nem uma espécie a menos.” Francamente, parece que
o Bloco tudo faz para não levarmos a sério a saúde do planeta. Com
graus a menos e graus a mais viveu sempre a humanidade. Aconselho a
Catarina Martins a leitura de dois livros muito informativos de Brian
Fagan, uma leitura que atenuaria a sua esplêndida ignorância: The Long
Summer. How Climate Changed Civilization e The Little Ice Age. How
Climate Made History 1300-1850. A demagogia irresponsável nunca foi a
melhor solução para os nossos problemas. Quanto às espécies, e para
continuar com conselhos literários na esperança de remover os seus
preconceitos aparentemente criacionistas, a leitura de Darwin basta.
Dir-me-ão que estou a ser injusto e não excessivamente subtil ao
levar à letra o que não passa de um mero slogan. A objecção seria
verosímil se a quase totalidade das propostas do Bloco (em relação ao
SNS, por exemplo, e mais genericamente no ódio a tudo o que cheire a
iniciativa privada) não desse mostra de idêntico primitivismo. Não, não
há profundidade ou complexidade algumas por detrás daquela superfície. O
Bloco não passa do pensamento a crédito, constituído por variações
sobre slogans por gente que pensa por palavras-de-ordem, como quem cospe
para o chão, e o seu sucesso é o estrito resultado da universal vontade
de acreditar. O Bloco usa e abusa do que se poderia chamar o “kitsch de
esquerda”: fornece uma comunicação sem distância por relação ao seu
objecto que assegura uma gratificação emocional instantânea e que
dispensa qualquer esforço intelectual, para falar como um teórico
célebre. O análogo discursivo do “Menino das lágrimas”. De facto, é como
se o “Menino das lágrimas” nos entrasse todos os dias em casa pela
televisão.
A linguagem é obviamente aqui fundamental. Ela tende, em certas
circunstâncias a comunicar-se e a pegar-se à pele para lá de toda a
racionalidade. Há casos onde isso é perfeitamente indiferente. Por
exemplo, nunca percebi porque é que os futebolistas, ao contrário do
comum dos mortais, não se instalam em hotéis, mas em “unidades
hoteleiras” (como na tipicamente televisiva frase: “Em que unidade
hoteleira (,) Rosário (,) se encontra a equipa?”). Daí não vem mal
nenhum ao mundo. Em contrapartida, vem muito mal ao mundo – vem
facciosismo, fanatismo, falta de atenção à realidade e falta de respeito
pela verdade – quando certas cristalizações linguísticas se operam e
expressões como “emergência climática”, “discurso de ódio”, etc., se
apresentam como evidências indisputáveis e, portanto, dispensando
verdadeiro inquérito. Do vocabulário político legítimo passa-se para as
expressões mágicas e para a tirania das palavras.
E é nisto que estamos. Portugal anda um azar e tenho a sensação que
um compositor que se metesse a escrever uma ópera sobre o nosso país nos
nossos dias não passava da primeira cena do primeiro acto. Há quem, é
claro, tenha razões para se sentir feliz. O Bloco, porque controla a
linguagem pública. E o PS, porque, com o auxílio do Bloco e do PC,
consegue não só manter mas solidificar o poder, que é a única coisa que
lhe interessa. Para mais, conta com a memória de banqueiro de uma parte
da população, como aquela que estava a pensar noutra coisa quando
Sócrates levou Portugal à falência.
E o PSD? As desilusões que temos com os políticos dizem, regra geral,
muito mais sobre nós do que sobre eles. Tive várias assim-assim, e, que
me lembre, apenas uma que levei a sério: com o Mário Soares do século
XXI. Mas mesmo esta, além de pouco interessante, diz provavelmente
também muito mais sobre mim do que sobre ele (em movimento contrário, só
me lembro de uma pessoa que me tenha verdadeiramente surpreendido pela
positiva: Passos Coelho). Com tudo o resto, para bem (Cavaco Silva, por
exemplo) e para o mal (Guterres, por exemplo), já contava mais ou menos.
Mas Rui Rio, em quem votei sempre no Porto, consegue ser, apesar de
tudo, uma desilusão. Só uma imagem me vem ao espírito: uma dona de casa
com a compulsão patológica, a obsessão, da limpeza, que só se dá a ver
ao mundo quando vem à janela sacudir o pó do pano. Alguém conta com ele
para mudar o nosso azar? Não.
BLOG ORLANDO TAMBOSI

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