A vingança do suicida é direcionada contra certas pessoas específicas; a
do atirador indiscriminado é contra o povo, ou a sociedade, em geral.
Artigo de Theodore Dalrymple, publicado pela Gazeta do Povo:
A maioria das pessoas, disse La Rochefoucauld, jamais se apaixonaria
se não tivesse ouvido falar em paixão. Se isso serve para o amor, talvez
também sirva para os tiroteios em massa — isto é, um caso estimula
outro, por isso eles parecem ocorrer em grupos, sobrepondo horror ao
horror. Poucas pessoas acreditam que o tiroteio de Dayton, Ohio, no qual
nove pessoas até agora perderam a vida, não tem nenhuma conexão com o
tiroteio que acontecera horas antes em El Paso, no qual vinte pessoas
morreram.
O papel da imitação no cometimento de atos de violência por pessoas
suscetíveis a isso é conhecido desde o fim do século XVIII, quando os
jovens românticos da Europa cometeram suicídio depois da publicação de
Os Sofrimentos do Jovem Werther, de Goethe, cujo herói se mata por causa
de um amor não correspondido. Ainda hoje, um suicídio numa novela é às
vezes acompanhado por um aumento nos casos – tanto que os produtores
hoje tomam cuidado ao retratar suicídios, por medo de serem acusados de
provocarem a onda de suicídios.
A violência do suicídio, claro, afeta principalmente a pessoa que o
comete, mas em geral – sobretudo entre os jovens – o suicídio contém um
elemento importante de agressão contra outras pessoas, impondo um ato de
vingança contra os outros por danos reais ou imaginários causados à
autoestima do suicida. O tiroteio em massa, que tem sido interpretado
como uma forma de suicídio porque a maior parte dos perpetradores acaba
morta, leva a vingança a um novo patamar. A vingança do suicida é
direcionada contra certas pessoas específicas; a do atirador
indiscriminado é contra o povo, ou a sociedade, em geral.
Há exceções: o piloto que deliberadamente jogou um avião alemão
contra uma montanha talvez estivesse tentando arruinar a vida da
ex-namorada para sempre, provocando nela uma imensurável sensação de
culpa; Anders Breivik matou aqueles que ele acreditava que acabariam por
diluir a identidade nacional norueguesa por defenderem o
multiculturalismo como ideologia política; e o atirador de El Paso, no
sábado (3), aparentemente queria matar explicitamente hispânicos. (A
motivação por trás do atirador de Dayton ainda é desconhecida).
Alguns atiradores em massa também voltaram para seus antigos empregos
e mataram seus ex-colegas. Em geral, contudo, as vítimas e a violência
estão vagamente relacionadas – tão vagamente, na verdade, que os
assassinatos em massa sugerem uma raiva embrionária contra a existência,
contra a sociedade e contra a própria vida do perpetrador.
Os assassinatos em massa do nosso tempo, geralmente, mas nem sempre,
tiroteios, parem ter começado (porque a imitação tem que ter um ponto de
partida qualquer) com o caso de Charles Whitman, que consultou um
psiquiatra por causa de seu mau humor e desejo de matar pessoas cada vez
maiores — daí ele matou a mãe e o pai, subiu numa torre do campus da
Universidade do Texas, e atirou e matou 16 pessoas ao acaso, ferindo
outras 44. O caso tem intrigado médicos desde então porque, no exame
cadavérico, descobriu que Whitman tinha um tumor no cérebro que pode (ou
não) ter anulado sua inibição natural de cometer assassinatos. De
qualquer forma, ele passou por uma transformação de caráter antes de ter
virado um assassino.
Os perpetradores deste tipo de crime tendem a apresentar inteligência
acima da média, apesar de não serem pessoas realizadas. Numa sociedade
na qual fama, reconhecimento e sucesso são de suma importância, na qual a
vida discreta não está na moda, esses criminosos se sentem
profundamente atingidos, na verdade insultados, pela suposta
incapacidade da sociedade de perceber quão importantes eles são, de
reconhecer seu valor.
Eles tampouco se sentem à vontade em suas relações pessoais – mas
eles procuram a causa de seus fracassos no mundo externo, não interno. O
mundo para eles é mau e injusto e, graças a eles, terá o que merece. Ao
longo do processo, claro, e como um benefício adicional, eles
alcançarão a fama e a notoriedade que merecem. Eles serão temas de
artigos, noticiários, um verbete na Wikipedia e, talvez, até livros;
eles serão tema de reflexão por parte dos intelectuais e dos famosos.
Dependendo do que façam, eles serão até mencionados pelo Presidente dos
Estados Unidos.
Quanto ao restante de nós, a importância desses atos vai muito além
da probabilidade estatística de sermos vítimas de um crime assim, que
continua sendo mínima. É que eles nos revelam o potencial sombrio da
alma humana.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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