A lerdeza do STF contribuiu para a morte de Alcirene de Oliveira que,
por não ter recebido um tríplex como propina e por não ter roubado uma
bermuda de R$10, não estava na lista de prioridades do STF. Paulo
Polzonoff Jr., via Gazeta do Povo:
De um lado, um ex-presidente condenado por corrupção e lavagem de
dinheiro que atualmente ocupa uma sala (não cela) relativamente
confortável na sede da Polícia Federal em Curitiba. De outro, um morador
de rua alcoólatra que ficou preso durante anos por roubar uma bermuda
de R$10 e uma mulher que precisava que o Estado lhe desse um medicamento
de alto custo.
No meio disso tudo, um Supremo Tribunal Federal que segue os mais
demorados trâmites burocráticos quando se trata de tirar um pobre da
prisão e de dar um remédio caro a uma doente, mas que é ágil e eficiente
quando se trata de garantir privilégios a um ex-presidente.
Justiça-relâmpago para Lula
A juíza Carolina Lebbos, da 12ª. Vara Federal de Curitiba, determinou
que o ex-presidente Lula fosse transferido para São Paulo às 8h33. A
decisão não agradou a defesa do ex-presidente, que recorreu ao STF para
impedir que ele cumprisse pena no presídio de Tremembé.
Convocado às pressas para tentar alguma manobra que impedisse Lula de
ir para um presídio comum, o advogado Cristiano Zanin e seus
assistentes escreveram uma petição para o ministro do STF Gilmar Mendes,
na qual pedia que Lula fosse posto em liberdade ou que, na
impossibilidade disso, fosse mantido na sede da Polícia Federal em
Curitiba.
A petição foi protocolada no Supremo Tribunal Federal às 14h06, cinco
horas e meia depois da decisão de Lebbos. Durante este tempo,
instalou-se a polêmica. Paulo Okamoto, diretor do Instituto Lula, disse
que a transferência do ex-presidente era uma humilhação imposta a Lula. O
governador de São Paulo, João Dória, se manifestou para, com ironia,
dizer que Lula seria muito bem recebido em Tremembé, onde estão presos
criminosos famosos como Alexandre Nardoni e Gil Rugai.
Uma vez protocolada a petição, foi a vez de deputados do Partido dos
Trabalhadores, liderados por Gleisi Hoffmann, abandonarem a votação do
segundo turno da Reforma da Previdência, em andamento na Câmara dos
Deputados, atravessarem a Praça dos Três Poderes e irem ao STF para
fazer pressão.
Três horas (horas!) depois de a petição de Zanin entrar no sistema do
STF, o plenário se reuniu para tomar uma decisão sobre o caso. Por
volta das 17h30, os ministros decidiram, por 10 votos a 1, que Lula não
poderia ser transferido para São Paulo.
A rapidez com que o Supremo Tribunal Federal tomou uma decisão quanto
à transferência ou não de um preso comum por ora hospedado numa sala da
sede da Polícia Federal para uma cela comum num presídio de São Paulo
gerou revolta. Afinal, como é possível que um homem condenado por
corrupção, ainda que ele já tenha ocupado o cargo máximo da nação,
consiga mobilizar as onze cabeças mais importes do Poder Judiciário para
que eles tomassem uma decisão sobre uma questão tão simples?
A resposta está no Regimento Interno do STF, que prevê a prioridade
dos habeas corpus sobre todas as outras questões. Todas. “Processos com
réu preso têm prioridade total sobre qualquer outro, até sobre aqueles
em que há risco de morte. É absurdo, mas desde os anos 1990 o sistema
funciona assim”, explica o advogado Evandro Fernandes de Pontes.
Atualmente, há 4 mil pedidos de habeas corpus esperando a análise dos
ministros do STF. A Corte já concedeu 451 habeas corpus só em 2019.
Bermuda de R$10
Mas nem sempre o Supremo Tribunal Federal é tão rápido e generoso. No
dia 17 de novembro de 2011, por exemplo, o morador de rua Evanildo José
Fernandes de Souza furtou de uma loja uma bermuda avaliada na época em
R$10. Isso mesmo: dez reais. A bermuda foi posteriormente devolvida, mas
Evanildo acabou preso mesmo assim.
No dia 16 de maio de 2017, às 16h23, a Defensoria Pública de Minas
Gerais protocolou no STF um pedido de habeas corpus para Evanildo, que
estava preso, vale lembrar, há cinco anos e meio por causa do furto de
uma bermuda que já tinha sido até devolvida à loja. A defesa alegava que
o morador de rua deveria ser posto em liberdade de acordo com o
Princípio da Insignificância – que, em linhas gerais, determina que não
cabe ao Direito Penal se importar com bagatelas, e condutas inofensivas,
incapazes de “lesar o bem jurídico”. Ou seja, o furto de uma bermuda de
R$10.
Apesar da prioridade que consta no Regimento Interno e apesar do
Princípio da Insignificância, o ministro Dias Toffoli, encarregado de
analisar o habeas corpus de Evanildo, decidiu negá-lo no dia 1º. de
junho de 2018 – mais de um ano depois de protocolado o pedido da defesa.
Diante da repercussão negativa do caso, Toffoli voltou atrás no dia
31 de agosto de 2018. Ainda assim, Evanildo ficou preso durante quase
sete anos pelo furto de uma bermuda de R$10.
Ao contrário do caso de Lula, contudo, a defesa de Evanildo não teve o
direito, ou melhor, o privilégio de recorrer diretamente ao Supremo. O
assunto foi tratado, primeiro, pelo Conselho Penitenciário, depois pelo
tribunal recursal e pelo Superior Tribunal de Justiça. Só então o STF
foi acionado.
O que vale mais? A liberdade ou o direito à vida?
O regimento do Supremo Tribunal Federal, em seu artigo 145, prevê uma
ordem de prioridade para as ações que chegam à Corte. Os habeas corpus
são prioridade máxima, seguidos por pedidos de extradição, causas
criminais com o réu preso, conflitos de jurisdição e recursos
eleitorais. Os mandados de segurança vêm apenas em sexto lugar na lista
de prioridades do STF.
O que talvez ajude a explicar a lerdeza que contribuiu para a morte
de Alcirene de Oliveira que, por não ter recebido um tríplex como
propina e por não ter roubado uma bermuda de R$10, não estava na lista
de prioridades do STF.
O problema de Alcirene é que ela estava doente e pleiteava junto ao
Supremo Tribunal Federal o direito de obter o medicamento Mimpara.
Fabricado no Canadá, o remédio custa R$780. Sem condições de comprá-lo,
Alcirene queria que o medicamento fosse fornecido pelo Sistema Único de
Saúde.
A disputa judicial teve início em 2009, mas chegou ao STF dois anos
mais tarde, em 19 de setembro de 2011. Mais de dois meses se passaram
somente para que o tribunal reconhecesse que se tratava de uma questão
constitucional, digna de atenção dos ministros. A partir daí, teve
início um longo processo burocrático. O Ministro Roberto Barroso pediu
vista em 15 de setembro de 2016, cinco anos depois de a ação chegar ao
STF. No dia 28 do mesmo mês, foi a vez de o ministro Teori Zavascki
pedir vista.
No dia 22 de junho de 2017, o ministro Marco Aurélio, responsável
pelo caso, decidiu liminarmente que o Estado de Minas Gerais tinha de
fornecer o remédio a Alcirene, sob multa de R$500 por dia. Quatro meses
se passaram sem que ela recebesse o remédio. Alcirene morreu no dia 9 de
dezembro de 2017. Sem o remédio.
O caso ainda se arrastou até o dia 22 de maio de 2019, quando
finalmente o STF tomou uma decisão que já não dizia mais respeito a
Alcirene.
Para o criminalista e constitucionalista Adib Abdouni, contudo, “não
se pode confundir os direitos em jogo (vida e liberdade de locomoção),
já que a urgência do habeas corpus tem prioridade, de acordo com o
artigo 649 do Código de Processo Penal, o que é reforçado pelo Regimento
Interno do STF”.
Não adianta espernear
Em nota de 2016, a assessoria do STF reafirmou que o regimento
interno do STF “determina que os habeas corpus, seguidos pelas causas
criminais e as reclamações têm preferência na pauta de julgamentos do
plenário e das turmas”. Na época, o então presidente do STF, ministro
Ricardo Lewandowski, disse que daria prioridade a “questões de
repercussão geral, que são aquelas de relevância social, econômica,
política ou jurídica”.
Em entrevista ao jornal El País, o professor de direito da FGV Thomaz
Pereira explicou que “cabe ao presidente e seus pares julgar aquilo que
entendem ser adequado”. “Quando você tem um tribunal com muita
liberdade para escolher o que e quando julga, ele passa a ter o ônus de
explicar suas decisões para a sociedade. É preciso que a Corte diga a
razão de um pedido de liminar ter sido julgado em dias e um outro
semelhante não ter sido analisado ainda anos depois de ter sido
protocolado”, disse.
BLOG ORLANDO TAMBOSI

Nenhum comentário:
Postar um comentário