Boa parte do feminismo atual, enquanto insiste em olhar para o mundo
desvalorizando o que a mulher fez e sobrevalorizando a esfera
tradicionalmente masculina, acaba vencida pelo seu próprio vocabulário.
Artigo dos professores André Azevedo Alves e Patrícia Fernandes,
publicado pelo Observador:
Quando Nicolau Copérnico publicou o seu De Revolutionibus Orbium
Coelestium em 1543 colocou à nossa disposição um exercício mental muito
mais do que uma experiência científica. Como Immanuel Kant notou no
prefácio da segunda edição de Crítica da Razão Pura, “não podendo
prosseguir na explicação dos movimentos celestes enquanto admitia que
toda a multidão de estrelas se movia em torno do espectador, tentou se
não daria melhor resultado fazer antes girar o espectador e deixar os
astros imóveis” (FCG, 2008). Foi isso que Kant tentou fazer na sua obra
magistral e talvez através do mesmo tipo de exercício seja possível
interpretar, enquadrar e compreender as reivindicações feministas mais
radicais do nosso tempo.
De facto, nunca como agora o espaço público se encontrou tão
preenchido de preocupações, exigências e vocabulários feministas. Um
longo caminho foi percorrido desde a primeira vaga que culminou na
vitória do movimento sufragista. De inspiração fortemente liberal, esta
primeira onda visava a aquisição de iguais direitos políticos e cívicos
para as mulheres, com destaque para o direito ao voto, dentro do sistema
de democracia liberal. A segunda vaga começará na década de 1960,
inicialmente integrada no movimento pelos direitos civis mas
progressivamente tornada mais radical pela New Left norte-americana. Em
causa estava, sobretudo, a questão do corpo, desde os chamados “direitos
reprodutivos” à contestação à objetificação da mulher. São os tempos da
queima de soutiens e do vestuário mais masculino; mas são também os
tempos da introdução de um vocabulário centrado em conceitos como
patriarcado, opressão e a sua comunhão com o capitalismo. Note-se como
de um feminismo que ambicionava a conquista de direitos liberais para as
mulheres se dá a passagem para um feminismo radical que defende o fim
de um suposto sistema de exploração e a sua substituição por uma nova
sociedade idealizada. Este feminismo assume, com isso, um carácter
fundamentalmente revolucionário, assente num projeto radical de
reconstrução social e das próprias relações humanas.
É possível pensar a partir daqui a pluralidade do movimento feminista
e refletir sobre como, nos últimos anos, o espaço público tem sido
marcado, por um lado, por reivindicações liberais tendencialmente
igualitárias e, por outro, por reivindicações de cariz mais radical que
aceleram a utilização de mecanismos coercivos por parte do Estado, como o
forçamento de quotas legais e a instrumentalização do aparelho
judicial. Compreendem-se aqui uma terceira vaga que introduz questões
laborais e a defesa de quotas no mundo político e empresarial, mas
também questões de género e de liberdade sexual, e uma quarta vaga, em
formação, que aprofunda a interseccionalidade e abarca movimentos como o
#metoo. Dada a complexidade do movimento feminista atual, quem se
debruça sobre o tema vê-se obrigado a destrinçar entre exigências de
igualdade hoje largamente consensuais no Ocidente e narrativas de cariz
conspirativo assentes na ideia de que há um sistema que, perversamente,
colocou de lado a mulher nos últimos milénios da história humana.
Esta última narrativa tem vingado progressivamente no espaço público
ocidental. Usemos como exemplo o capítulo «As mulheres do macaco bêbedo»
do livro de Afonso Cruz, O macaco bêbedo foi à ópera
(FFMS, 2019). Indubitavelmente de boa fé, o autor afirma que “a
civilização teve péssimas consequências para as mulheres”, que foram
“quem injustamente mais sofreu com ela”, tendo sido “remetidas para um
canto da vida social” – num livro que não é sobre mulheres nem
feminismo, mas sobre álcool e o seu papel na evolução humana. Sem se dar
conta da contradição, naquele mesmo capítulo o autor destaca a
centralidade do contributo feminino no que a este tema diz respeito: era
da mulher a tarefa de fazer cerveja na Mesopotâmia e teriam nascido da
mulher as primeiras ideias sobre agricultura, criação de gado, tecidos,
tinturarias, medicina – e a lista continua. Ainda mais importante, o
escritor reconhece o papel desempenhado pelas mulheres no
desenvolvimento da cultura: “O entretenimento e a cultura estavam
literalmente nas suas mãos.” E cabia-lhes contar as histórias que
construíam a identidade individual e coletiva dos membros mais novos do
grupo, o mesmo é dizer que cabia às mulheres a mais nobre das tarefas: a
educação das crianças.
Não se percebe assim que canto é esse em que as mulheres foram
maldosamente colocadas, quando afinal sempre lhes coube um papel tão ou
mais relevante do que o cumprido pelos homens. É verdade que não foi
habitualmente o mesmo papel – homens e mulheres atuaram genericamente em
esferas diferentes, cumprindo tarefas habitualmente diferentes mas
igualmente essenciais. Curiosamente, só se adotarmos o entendimento de
que o mundo masculino é mais relevante do que o mundo feminino é que
consideraremos que as mulheres foram colocadas à parte.
Parece ser este, precisamente, o problema de segmentos significativos
do feminismo atual. À semelhança dos pré-copernicanos, estas feministas
permanecem agarradas a uma perspetiva do mundo que as impede de ver que
ele é muito mais amplo do que o óculo pelo qual espreitam. E como são
incapazes de ver para além dele, não conseguem pensar numa solução que
não passe pela destruição completa desse mundo e a sua substituição por
uma utopia idealizada. Curiosamente, enquanto insistirem em olhar para o
mundo desvalorizando o que a mulher fez e sobrevalorizando uma esfera
tradicionalmente masculina, serão vencidas pelo seu próprio vocabulário.
A existir algo como o patriarcado, ele terá vencido.
Patrícia Fernandes é professora da Universidade da Beira Interior
André Azevedo Alves é professor do Instituto de Estudos Políticos da Universidade Católica Portuguesa
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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