"Se há uma relação
íntima entre ética e estética, os valores cultivados por quem cresceu
ouvindo lixo cultural evidentemente vão se refletir em suas ações.
Fechar os olhos a isso e não cuidar para que o que nós ouvimos e
consumimos como arte seja algo minimamente razoável ultrapassa o limite
da irresponsabilidade: é suicídio". Artigo do maestro Tom Martins,
publicado pela Gazeta do Povo:
O conceito de ethos
em música, de acordo com a filosofia grega, grosso modo, trata da
capacidade que a música tem de moldar o caráter e influenciar o
comportamento humano. Tal ideia era tão importante para os gregos que
Dámon, na República, afirma que “não se pode alterar os modos musicais
sem alterar ao mesmo tempo as leis fundamentais do Estado”.
Para os gregos, havia
harmonias valorosas e dignas de permanecerem na República, pois
formariam guerreiros de caráter; havia também harmonias lamentosas e
plangentes que deveriam ser suprimidas. “Nada há mais inconveniente para
os guardiães do que a embriaguez, a moleza e a indolência”, afirmava
Sócrates.
No período barroco, a
Teoria dos Afetos alegava que determinados recursos técnicos musicais
poderiam despertar emoções específicas comuns a todos os ouvintes. O
compositor, escritor e teórico alemão Johann Mattheson, em sua obra Das
neu-eröffnete Orchestre (“A orquestra recém-inaugurada”), de 1713, lista
as características que julgava haver nas tonalidades maiores e menores.
Por exemplo, a tonalidade de dó maior teria uma qualidade rude e
insolente, enquanto dó menor seria amável e triste; intervalos pequenos
remeteriam à tristeza; intervalos amplos, à alegria, e assim por diante.
A Teoria dos Afetos
foi crucial para o desenvolvimento da ópera desde o fim do Renascimento,
e seus conceitos ainda são usados, por exemplo, na música de cinema ou
mesmo na música pop.
A preocupação com a
influência que a música causa no espírito sempre esteve presente na
história da humanidade. É na pós-modernidade que tais questionamentos
caem em descrédito e a reflexão sobre as influências positivas e
negativas advindas da escuta e da prática musical torna-se algo
retrógrado e antiquado. Quando qualquer coisa pode ser considerada arte,
os juízos de valor, assim como as questões morais e éticas
relacionadas, são os primeiros a serem suprimidos do debate estético.
Um passeio pela
história da indústria musical brasileira, da década de 1990 até os dias
de hoje, seria muito semelhante à visita que Dante fez ao Inferno,
começando nos primeiros círculos do “É o Tchan” e sua luxuriosa boquinha
da garrafa, até os círculos mais profundos dos pecados mais infames,
como a ira, a heresia, a violência e a traição, onde certamente estão o
funk carioca e os raps proibidões de louvor à criminalidade. Na história
da recente música pop brasileira deveria haver a inscrição “Deixai toda
esperança, ó vós que entrais!”
A chamada “cultura
funk” promove a degradação do ambiente urbano, incentiva a sexualização
precoce de crianças e adolescentes, e estimula a violência, seja
diretamente, através da lavagem de dinheiro, seja indiretamente, devido
às suas letras que romantizam o banditismo e o uso de drogas.
A música – ou a arte –
não é necessariamente algo bom apenas por ser música ou arte. Há a
música nefasta, a arte degradante. Se há uma relação íntima entre ética e
estética, os valores cultivados por quem cresceu ouvindo lixo cultural
evidentemente vão se refletir em suas ações. Fechar os olhos a isso e
não cuidar para que o que nós ouvimos e consumimos como arte seja algo
minimamente razoável ultrapassa o limite da irresponsabilidade: é
suicídio.
Tom Martins, bacharel em Composição e Regência, é maestro da OFSSP, compositor e instrumentista.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
Nenhum comentário:
Postar um comentário