Colunista do Observador,
o professor e ensaísta João Carlos Espada escreve sobre o documentário
"Civilizações", da BBC, dirigido por historiadores respeitados (Simon
Schama, Mary Beard e David Olusoga):"faço
votos de que a nova série sobre ‘Civilizações’ (no plural) exprima a
mesma confiança nas virtudes da velha série sobre ‘Civilização’ (no
singular): ordem, tranquilidade, decoro, modéstia, bom senso e beleza":
Na próxima
quinta-feira, 1 de Março, o canal televisivo BBC 2 iniciará a emissão de
um documentário (em nove episódios) intitulado ‘Civilizações’. Dirigido
por três respeitados historiadores — Simon Schama, Mary Beard e David
Olusoga — a série revisita o célebre documentário (em treze episódios)
estreado pela BBC 2 em 1969, intitulado ‘Civilização’. Nos EUA, o novo
programa começará a ser emitido a 17 de Abril.
Não conheço a nova
série no plural (‘Civilizações’), mas tenho em DVD a antiga (no
singular, ‘Civilização’), de 1969. E gosto de a rever, de tempos a
tempos. Kenneth Clarke — que ficou conhecido como ‘Lord Clark of
Civilisation’ — dirige toda a série com distinção e ironia.
Sempre de gravata e
fato (em regra de tweed e sempre com o casaco abotoado, diferentemente
de um certo Presidente norte-americano, bem como de quase todas as
actuais celebridades mediáticas, sem gravata e de barba por fazer),
começa a série com uma inesquecível cena em frente da Notre Dame de
Paris: ’Não sei ao certo como definir civilização, mas creio que consigo
reconhecê-la quando a vejo’.
O programa está
repleto de referências politicamente incorrectas que serão chocantes
para a actual ortodoxia bem pensante. Uma das mais famosas é a sua
tirada sobre a ‘vontade popular’:
‘Contrariamente ao nosso sentido moderno de igualdade, não podemos deixar de nos interrogar até onde teria ido a civilização se tivesse estado inteiramente dependente da vontade popular’.
Por causa desta e de
outras passagens — a começar pelo estrito ‘dress code’ — a esquerda
geralmente acusou Clark do pecado capital de ‘elitismo’. Uma certa
direita estridente provavelmente acusá-lo-ia hoje do mesmo pecado
capital.
No entanto — e, à
primeira vista, paradoxalmente — Kenneth Clark critica repetidamente a
pompa e arrogância das elites fechadas sobre si próprias, que desdenham e
não prestam contas às pessoas comuns. O alvo favorito de Clark é
Versailles, que ele descreve sarcasticamente como fonte de ‘pânico e
fatiga’. Versailles é aqui obviamente o símbolo de uma monarquia
absoluta e de uma aristocracia dependente do poder central, que
abandonou as suas raízes — e os seus deveres — para com as populações
locais.
Nesta crítica a
Versailles, Clark pode parecer — aos olhos do acanhado debate actual
sobre a infeliz dicotomia elitismo vs. populismo — um populista.
Acredito que essa
dicotomia teria parecido bizarra a Kenneth Clark. Como escocês
orgulhoso, e como orgulhoso súbdito da monarquia constitucional
britânica, ele obviamente admirava o regime político misto do Reino
Unido — assente numa excêntrica combinação (que não foi desenhada
centralmente por ninguém) entre um princípio monárquico, um princípio
aristocrático e um princípio democrático. Por isso, ele podia combinar
naturalmente uma dose interessante de elitismo e e uma dose interessante
de populismo.
Esta tensão entre
‘elitismo’ e ‘populismo’ merece aliás certo destaque na introdução de
Alastair Sooke à nova edição do livro que serviu de base ao programa
televisivo de Kenneth Clark. O livro, publicado no final de 1969, vendeu
entretanto milhão e meio de exemplares. Acaba de ser reeditado, com
nova Introdução de Alastair Sooke. Os leitores da livraria Hatchards,
fundada em Piccadilly em 1797, acabam de eleger o livro — em referendo
(!) — como um dos melhores dos últimos 200 anos.
Mas o mais
interessante na Introdução de Alastair Sooke não são as referências ao
debate vulgar entre elitismo e populismo. O mais interessante é a sua
síntese acerca da ideia de Civilização em Kenneth Clark:
‘Gradualmente, no entanto, a sua [de Kenneth Clark] visão de civilização começa a cristalizar: ordem, tranquilidade, decoro, modéstia, bom senso — e, obviamente, beleza (“uma palavra muito usada e abusada… mas não consigo pensar num substituto” tinha dito Kenneth Clark).
A estes seis
elementos, Alastair Sooke acaba por acrescentar displicentemente um
outro: ‘confiança’. Isso decorre da permanente fragilidade da
civilização, de acordo com Kenneth Clark. Leva muito tempo a construir,
mas pode ser destruída muito depressa. E, por isso, a principal
qualidade que ele admirava nos seus heróis da civilização ocidental é
muito simples: confiança.
Faço votos de que a
nova série sobre ‘Civilizações’ (no plural) exprima a mesma confiança
nas virtudes da velha série sobre ‘Civilização’ (no singular): ordem,
tranquilidade, decoro, modéstia, bom senso e beleza.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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