Mário Vargas Llosa
escreve sobre a autobiografia de um entusiasta da revolução sandinista -
outra experiência totalitária na América Latina -, que, ainda bem,
passou por um processo de desilusão. Mas, como a estupidez ideológica é
entranhada na região, haverá, sempre, muitos iludidos pela arenga
socialista - e que jamais se desiludem:
Não havia lido a autobiografia de Sergio Ramírez, Adiós Muchachos – A História da Revolução Sandinista e Seus Protagonistas
[Editora Record, 2011], e acabo de fazê-lo, comovido. É um livro
sereno, muito bem escrito, exaltante em sua primeira metade e bastante
triste na segunda. Conta a história da revolução sandinista, que em 1979
pôs fim à horrível dinastia dos Somoza na Nicarágua, uma das ditaduras mais corruptas e cruéis da história da América Latina, e na qual ele teve um papel importante, primeiro como conspirador e resistente, e depois no Governo presidido pelo comandante Daniel Ortega, no qual foi vice-presidente.
Foram muitos anos de
luta, muito difíceis, de sacrifício e heroísmo, em que milhares de
nicaraguenses perderam a vida e a liberdade, padeceram torturas, exílio,
longos anos de prisão, enfrentando uma Guarda Nacional cuja selvageria
não tinha limites. Os rebeldes eram, sobretudo no princípio, pessoas
humildes, os pobres entre os mais pobres, mas logo se foram somando
gente da classe média e, por fim, profissionais, empresários e
agricultores, e principalmente seus filhos, movidos por um idealismo
generoso, pela ideia de que, com a queda da ditadura, começaria um
período de justiça, liberdade e progresso para o povo de Rubén Darío e
de Augusto César Sandino. Muitas mulheres combateram na vanguarda desta
revolução, assim como os católicos – a Nicarágua é talvez o país onde o
catolicismo está mais vivo na América Latina –, e Ramírez descreve com
muita propriedade as distintas correntes que formavam essa heterogênea
aliança de comunistas, socialistas, democratas, liberais e castristas
que respaldaram a revolução no princípio, antes que começassem as
inevitáveis divisões.
As páginas de Adiós
Muchachos que evocam o entusiasmo e a alegria com que a imensa maioria
dos nicaraguenses viveu os primeiros tempos da revolução – as campanhas
de alfabetização, a conversão de quartéis em escolas, a distribuição das
terras e fábricas expropriadas dos Somoza e seus cúmplices aos setores
de mais baixa renda – são emocionantes, o início do que parecia ser a
grande transformação da Nicarágua em um país deveras livre, democrático e
moderno.
Não foi assim, e
Sergio Ramírez responsabiliza os “contras”, armados e financiados pela
CIA, pelo fracasso da revolução sandinista. Tenho a impressão de que a
contrarrevolução foi mais um efeito que uma causa, pelo descontentamento
que se espalhou em um setor amplo da sociedade nicaraguense com a
política equivocada do regime destinada a transformar o país em uma
sociedade estatizada e coletivista, com as nacionalizações maciças e a
criação de fazendas de camponeses no estilo soviético, e as emissões sem
lastro que, ao invés de impulsionar, arruinaram a economia nacional e
desencadearam uma inflação galopante, que, como sempre, golpeou
sobretudo os mais pobres. A desordem e o caos, e, claro, a corrupção que
tudo isso originou, a chamada piñata – a repartição dos bens e dinheiro
supostamente públicos entre as pessoas do poder –, que Sergio Ramírez
descreve magistralmente no capítulo de seu livro intitulado com humor
ácido “Os rios de leite e mel”, tinham que desencantar e empurrar para a
oposição muitos nicaraguenses que odiavam a ditadura de Somoza, mas não
queriam que uma segunda Cuba a substituísse. (Diga-se, de passagem, que
é fascinante descobrir em Adiós Muchachos que uma das pessoas que mais
tentavam moderar os dirigentes sandinistas em suas reformas
revolucionárias era Fidel Castro!)
A segunda parte do
livro é de uma crescente tristeza, pois nela se descreve o progressivo
descalabro da revolução, as divisões entre os sandinistas, e a lenta,
mas segura, ascensão do comandante Daniel Ortega e sua esposa, Rosario
Murillo, ao vértice de um poder do qual só um punhadinho de sátrapas
pôde desfrutar na história latino-americana. Terra de grandes poetas e
excelentes escritores, como o próprio Sergio Ramírez, a Nicarágua terá
que produzir algum dia o romance que eternize a história de Daniel
Ortega, este alucinante personagem que, depois de dirigir a revolução
sandinista contra os Somoza, foi se transformando ele mesmo em um Somoza
moderno, ou seja, em um ditadorzinho corrompido e manipulador, que,
traindo todos os princípios e aliando-se com todos os seus inimigos de
ontem e de antes de anteontem, conseguiu gozar de um poder absoluto ao
longo de vinte anos, fazendo-se reeleger em eleições circenses e, apesar de tudo isso, gozando ainda – por extraordinário que pareça – de certa popularidade.
Para conhecer algo de
sua história é preciso fechar Adiós Muchachos e ler o esplêndido ensaio
Una Fábrica de Espejismos (“uma fábrica de miragens”), do próprio
Ramírez, no livro El Estallido del Populismo (“a eclosão do populismo”,
2017), onde está sintetizada, com traços de mestre do realismo mágico, a
trajetória desse inverossímil personagem até nossos dias. Para começar,
experimentou uma oportuna conversão ao catolicismo e agora comunga
devotamente da mão do cardeal Miguel Obando y Bravo, seu antigo inimigo
mortal e hoje ferrenho aliado, que deu sua bênção ao Governo “cristão,
socialista e solidário” dos Ortega/Murillo. Também fez um pacto com
empresários mercantilistas que, sob a condição de nunca falarem de
política, fazem ótimos negócios com o regime. Mas o mais surpreendente
talvez seja que na heterogênea aliança que Daniel Ortega e Rosario
Murillo conseguiram armar para se manter no poder – esta é sua
vice-presidente e poderia ser a próxima presidenta da Nicarágua caso seu
marido decida tirar algumas férias – também figuram os bruxos, pais de
santo, curandeiros, feiticeiros e taumaturgos do país. Cito Ramírez: “A
mão aberta de Fátima, filha de Maomé, com um olho no centro, que
representa bênçãos, poder e força, e também proteção contra o mau
olhado, esteve desde 2006 atrás do casal presidencial na sala de suas
audiências, num imenso mural”.
O ensaio também faz
referência aos fantásticos projetos com que o Governo da celebérrima
dupla, que emula a de House of Cards, alimenta as ilusões de seus
eleitores, como o famoso Grande Canal da Nicarágua, que iria competir
com o do Panamá e seria financiado pelo bilionário chinês Wang Ying (já
quebrado e esquecido), e uma fábrica de produtos farmacêuticos em
Manágua destinada a produzir nada menos que... uma vacina contra o
câncer! A lista de ficções como essas é longa e parece saída de Macondo.
Todas estas coisas
Ramírez conta sem se alterar, com objetividade, embora por trás da
moderação e elegância com que escreve se vislumbre um profundo
padecimento. O seu deve ser o de muitos nicaraguenses que, como ele,
dedicaram os melhores anos de sua vida, seu tempo e seus sonhos a lutar
por uma ilusão histórica que viveu uma realidade efêmera e depois foi se
desfazendo e se transformando em grotesca caricatura. (El País).
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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