Paulo Tunhas escreve
sobre a dicotomia direita/esquerda, que conviria hoje definir, talvez,
como oposição entre liberalismo e estatismo. Sua conclusão é certeira:
"se quisermos
recorrer ao vocabulário da “esquerda” e “direita”, como temos de o fazer
no dia-a-dia, é muito verosímil que aquilo que se chama “direita”
ofereça hoje em dia concepções menos patológicas da sociedade do que
aquilo que se chama “esquerda”. A direita evoluiu, a esquerda, pelo
contrário, regrediu". Ainda: "O
estatismo (e, vá lá, o “amor pela cultura”) tornou-se quase a marca
única da esquerda. A direita define-se de forma mais variada e matizada.
Dito de outra maneira: faz menos mal à sociedade. Terá de ser sempre
assim? Duvido. Mas no momento presente é, parece-me, assim". Eis o
artigo completo, publicado no Observador:
Não digo que seja a
chave para o que quer que seja, mas se quisermos reflectir um pouco
sobre o estado presente da nossa sociedade não é inútil pensar um pouco
nas infinitas formas que as sociedades tomaram ao longo dos tempos, nas
várias crenças que adoptaram, nas instituições que criaram, na maneira
como a si mesmas se imaginaram, nos símbolos que escolheram para si. O
espectáculo que encontramos é um pouco o do botânico que atravessa uma
selva luxuriante. Há o terrível e há o maravilhoso e há muitas vezes o
terrível indistinguível do maravilhoso. Encontramos astecas e súbditos
de faraós, senadores romanos e profetas armados, decências vitorianas e
monstruosidades totalitárias. Uma coisa é certa: tudo isso é criação
humana, algo que o filósofo francês de ascendência grega Cornelius
Castoriadis pensou talvez melhor e mais radicalmente que ninguém.
Serei o último a
recusar qualquer pertinência à distinção entre direita e esquerda.
Precisamos de opor para pensar e para nos orientarmos no pensamento,
como lembrava Fernando Gil, e o pensamento político, mesmo o mais
imediato e circunstancial, não escapa a esta condição geral. Mas, ao
mesmo tempo, é uma oposição que tende a recalcar algo de essencial. A
verdadeira interrogação sobre a natureza da sociedade não é, não pode
ser, nem de “esquerda” nem de “direita”, contrariamente à pretensão de
muita gente. Os projectos políticos, esses sim, deixam-se em parte
definir em tais termos. Mas os projectos políticos que não se alicerçam,
de forma mais ou menos reflectida, numa interrogação filosófica sobre a
criação humana da sociedade tendem declaradamente para a
monstruosidade, ou, pelo menos, para uma pobreza e para uma rigidez
esquemática que não se recomendam.
Olhando à nossa
volta, encontramos gente que, para retomar a distinção célebre de
Tocqueville, é dominada pela “paixão da liberdade” e gente em que a
“paixão da igualdade” é dominante. É muito duvidoso que sejam paixões
naturais e universais. São, com toda a probabilidade, paixões que nascem
no contexto de uma certa tradição – a nossa, a ocidental – e que têm,
assim, uma raiz comum. O que, à sua maneira, significa que não são
incompatíveis uma com a outra. Pessoalmente, e sem querer cair em magias
dialécticas, sempre me pareceu que a liberdade não sobrevive sem uma
certa forma de igualdade e que a igualdade rapidamente desaparece se não
se encontrar acompanhada de alguma figura de liberdade. Não creio, de
resto, que seja um pensamento excessivamente original: a maior parte das
pessoas pensa assim.
Resta que a
instrumentalização política dessas paixões, aquela exactamente levada a
cabo pelos projectos políticos que silenciam qualquer reflexão efectiva
sobre a natureza da sociedade, conduz a uma sua absolutização que impede
que entre elas se forme qualquer aliança. Resulta daí o nascimento de
concepções de justiça radicalmente incompatíveis entre si que formam o
núcleo mais duro da oposição entre direita e esquerda. As concepções da
justiça são já de si naturalmente plurais e não há filósofo algum que
subscreva, de Platão a Rawls, o pensamento de um outro nessa matéria, um
fenómeno que não se encontra com um peso equivalente em matérias
relativas ao conhecimento ou até em questões estéticas. Mas quando o
problema da justiça se encontra absorvido pelos projectos políticos que
silenciam a questão da origem da sociedade essa pluralidade
transforma-se numa oposição rígida e esquemática. Para uns, a justiça
coloca a liberdade no seu centro. Para outros, a igualdade.
Nas nossas
sociedades, essa oposição forte fornece o assento ao conflito entre
liberalismo e estatismo, que é provavelmente a forma mais aparente da
oposição entre direita e esquerda. Mais uma vez, trata-se de uma
radicalização de algo que pode e deve ser pensado sem conduzir a
posições extremas. Nem a liberdade individual é algo que se defina por
oposição ao Estado, nem o Estado supõe a anulação desta. Acontece no
entanto que os projectos políticos tendem a encaminhar-se para os
extremos, conduzindo a situações patológicas. E há patologias da
liberdade e patologias da igualdade.
Estas questões não se
colocariam se fossemos astecas ou súbditos de Amenófis IV. Colocam-se
(felizmente) a nós. E por isso o juízo político e a deliberação política
devem buscar as soluções menos patológicas, que são aquelas que mantêm
viva, por mais precária que seja essa vida, a interrogação sobre a
natureza da sociedade como criação humana e a reflexão sobre a justiça.
Com toda a probabilidade, o grau de nocividade das patologias varia com o
tempo e a situação histórica. Em certas situações, aquilo que o
filósofo conservador Roger Scruton chamou um desprezo quase nietzschiano
pelos que são dependentes é mais nocivo. Noutras, é mais nocivo o
projecto de uma sociedade constituída por uma massa de dependentes do
Estado.
Se quisermos recorrer
ao vocabulário da “esquerda” e “direita”, como temos de o fazer no
dia-a-dia, é muito verosímil que aquilo que se chama “direita” ofereça
hoje em dia concepções menos patológicas da sociedade do que aquilo que
se chama “esquerda”. A direita evoluiu, a esquerda, pelo contrário,
regrediu. A direita pensa de forma menos extremada a relação entre o
indivíduo e o Estado do que a esquerda e a possibilidade de pensar a
justiça social que a direita oferece encontra-se mais próxima de uma
concepção pluralista desta do que aquela que a esquerda, mais rígida,
permite. O estatismo (e, vá lá, o “amor pela cultura”) tornou-se quase a
marca única da esquerda. A direita define-se de forma mais variada e
matizada. Dito de outra maneira: faz menos mal à sociedade. Terá de ser
sempre assim? Duvido. Mas no momento presente é, parece-me, assim.
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