Retomar
ideias que foram soterradas nos escombros do Muro de Berlim, escreve o
professor Alberto Oliva, leva a Caracas - não a Estocolmo. Namorar o
atraso, aliás, sempre foi um vício brasileiro:
1. A Fisionomia esconde uma Fisiologia
Concita-nos
o compositor: “Brasil, mostra tua cara!” Qual delas? A dos educados,
ordeiros, trabalhadores e empreendedores ou a dos incivis, baderneiros,
corruptos e seus defensores? Nossa sociedade está bem fotografada no
varejão da corrupção do dia-a-dia, na desordem urbana, na Cracolândia e
na Bufunfalândia dos tesoureiros dos Partidos e dos empresários
agarrados às tetas do BNDES. Urge levar os formadores de opinião ao
oftalmologista para que possam vir a enxergar, com lentes apropriadas, o
Brasil como ele é sem as tintas de ideologias obscurantistas.
É
crucial identificar as matrizes das ideias que habitam o container
mental brasileiro. Ainda está por ser explicado de onde vem a
preferência pelo protecionismo, patrimonialismo, estatismo,
corporativismo, clientelismo e outros ismos que nos mantêm estagnados.
Os voos de galinha são sempre seguidos de retrocessos monumentais, como o
dos últimos tempos. Espanta a tolerância com a voracidade tributária
trilhonária que dilapida e desperdiça recursos escassos. Igualmente
assustador é o laxismo generalizado, totalmente indiferente ao avanço
das incivilidades e das brutalidades. Impressiona também o
superficialismo intelectual que quando sai das palavras de ordem
mergulha na rusticidade vernacular, pouco indo além dos monossílabos
anaglíficos.
Nossos
intelectuais são como papagaios extasiados com as cores das próprias
penas. Constroem teias de pretensas ideias que não se sentem obrigadas a
se submeter ao crivo da razão e dos fatos. A preferência por
pseudofilosofias, modismos filosóficos parisienses e abstrusos sistemas
metafísicos servem para cevar nossa secular ignorância. A bem acolhida
vulgata marxista nas escolas de primeiro e segundo graus mostra como o
maniqueísmo ideológico serve para nos impedir de enxergar a complexidade
institucional e funcional da vida social. Nossa realidade é muito
intrincada para ser visitada com tangas intelectuais. Vestimentas
sumárias só servem para desfilar por Paraísos Tropicais e para deitar na
rede de Macunaima, o herói da Preguiça Universal.
Adoramos
nos excluir dos problemas: o inferno são os outros. A teoria da
conspiração é nosso salvo-conduto: nada temos a ver com a realidade
cruel que vai sendo construída ao longo do tempo. O “espírito crítico”
seletivo, expressão de desonestidade moral e intelectual, nega que os
companheiros tenham levado o velho patrimonialismo às últimas
consequências, que tenham instaurado a pior versão de capitalismo, o de
compadrio. Quando a moral só vale para o outro, o cinismo passa a ser a
tônica. A crítica confundida com a repetição monocórdia de uma ideologia
está nos levando à pior cegueira – a do entendimento.
Um grito: A toga partidarizada é a ruína do Estado de Direito.
2. Um país sem elites, mas com privilegiados
A
política como fé ensina que a Terra Prometida é logo ali. Basta nos
desvencilharmos dos vilões, das “zelites”. Aliás, as elites por aqui são
atacadas ignorando-se que, na realidade, delas carecemos. Elites
genuínas são as que primam pelo nível elevado de seu desempenho
profissional e moral e que se distinguem por se sacrificarem dando
exemplo. Não são elites as que querem tirar proveito das situações
explorando o privilégio da posição.
Não há
como erigir uma sociedade sobre pilares universais, que sirvam à
coletividade na sua integralidade, se prevalece o corporativismo criador
de subsistemas que olham para a sociedade não como uma rede de
indivíduos livres e soberanos, mas basicamente como coletivos que
precisam ter seus interesses uniformemente atendidos, mesmo que seja em
detrimento do bem comum. Essa ideia de que direitos individuais só
encontram legitimidade no ente coletivo – corporações, etnias, gêneros
etc. – gera efeitos ruinosos para a coesão social e só serve para
disseminar a desconfiança generalizada entre as pessoas. Nos últimos
trinta anos, o Brasil tem se afastado crescentemente da construção de
uma Sociedade da Confiança. Os pregoeiros da cizânia têm alcançado
enorme sucesso. Acreditam que colherão os frutos da discórdia. Ledo
engano. Retomar ideias que foram soterradas sob os escombros do Muro de
Berlim leva a Caracas, não a Estocolmo.
Se
certos tipos de ideia prosperam em determinadas sociedades é porque têm
apelos emocionais que as tornam atraentes para o “homem médio”. Ninguém
abraça certas ideias sem se envolver emocionalmente com a visão de mundo
que representam. Quanto mais entusiasta o acolhimento, mais se deu de
modo irrefletido. Isto porque tem mais a ver com predisposições
culturais e preferências pessoais. As ideias que penetram no
“inconsciente coletivo” são como pedaços de mundo internalizados. Não
basta denunciar que o ensino das humanidades está todo dominado pela
óptica do marxismo vulgar. É fundamental indagar o que possibilita isso.
Se não for enfrentada esta questão, só estaremos habilitados a atacar
os efeitos, e não saberemos que antídoto se pode oferecer para o
envenenamento das consciências.
Visões
românticas sobre graves problemas – como o da violência – e duras
avaliações e posturas persecutórias contra os adversários ideológicos
mostram que os chupadores de nuvem não hesitam em brandir peixeiras
quando das nuvens sai o temporal. Em nome da libertação coletiva se
escravizou e matou muito com muita convicção ideológica no século XX. Os
ideologizados ignoram a carga de sofrimento resultante da adesão cega a
ideias erradas e enganosas. A intoxicação ideológica gera o mesmo
efeito que as drogas.
Sabemos
como pensam algumas pessoas no Brasil, mas ignoramos o material
ideacional com que se forma o senso comum e por que se mostra tão
vulnerável às pregações que, a despeito de se valerem de retórica
redentora, anulam o indivíduo reduzindo-o ao conjunto de necessidades
materiais do coletivo a que pertence. A hipocrisia moral e o achismo
intelectual fizeram uma aliança; seus resultados são a idiotização
generalizada e a supremacia do pensamento de massa sobre a reflexão
crítica. O fato de determinadas formas de pensamento merecerem uma
recepção calorosa e entusiástica em nosso ambiente cultural não é fruto
do acaso. Os modismos intelectuais que causam por aqui frisson,
entusiasmo papagueador, apresentam afinidade com nossas tradições
bacharelescas presas ao retorismo, ao gosto especial pelo oracular,
sibilino, pela “profundidade” ininteligível do sem sentido. Isto foi
muito bem percebido por Lima Barreto em “O homem que sabia javanês”:
O diretor chamou os chefes de seção: “Vejam só, um homem que sabe javanês — que portento!” […]
Na rua, os informados apontavam-me, dizendo aos outros: “Lá vai o sujeito que sabe javanês.” Nas livrarias, os gramáticos consultavam-me sobre a colocação dos pronomes no tal jargão das ilhas de Sonda. Recebia cartas dos eruditos do interior, os jornais citavam o meu saber e recusei aceitar uma turma de alunos sequiosos de entender o tal javanês. A convite da redação, escrevi, no Jornal do Commércio, um artigo de quatro colunas sobre a literatura javanesa antiga e moderna…
— Como, se tu nada sabias? — interrompeu-me o atento Castro. — Muito simplesmente: primeiramente, descrevi a ilha de Java, com o auxílio de dicionários e umas poucas de geografia, e depois citei a mais não poder.
— E nunca duvidaram? — perguntou-me ainda o meu amigo.
3. A genética do atraso
É
chegada a hora de fazermos um inventário dos fatores que definem o
(des)gosto intelectual no Brasil. Que “bagagem genética” é essa que faz
com que por aqui tenha grande penetração tudo que pode ser ideologizado
de modo teatralizado? A falta de distanciamento crítico nos leva a ser
servis a ideias ensinadas de forma dogmática, sem um pingo de teor
reflexivo. É fácil creditar isso ao péssimo nível do ensino. Estou
convencido de que mesmo que nos tornássemos uma potência
científico-tecnológica, continuaríamos metendo os pés pelas mãos no
campo do estudo dos fatos humanos e sociais. Daí a urgência de se pensar
de onde vêm as seduções que obnubilam as mentes não só do homem comum
como também do intelectual. Este último não tem, na esmagadora maioria
dos casos, como ser recuperado para o debate, para o intercâmbio
crítico, já que repete de forma monocórdia, como mantras, palavras de
ordem, chavões e esquematismos explicativos. Um intelectual
hiperideologizado é um ressentido contra um saber que sabe que jamais
alcançará. Repete esquemas de pensamento que não se propõem a avaliar a
si mesmos. Assemelha-se ao religioso que reza sem saber o significado
das palavras, sem recorrer ao Esperanto do Pai.
Se o
marxismo vulgar, o economicismo, a concepção rousseniana de homem e o
passivismo, que espera que os manás caíam do céu ou sejam dados pelo
governo, mostram enorme viço por aqui é porque encontraram terreno
fértil. Inexiste poção miraculosa contra a falta de envolvimento com as
instituições, a incapacidade de o brasileiro se enxergar como agente
responsável – coautor dos processos sociais e construtor da nação. O
desafio maior não é dissecar a formação das várias modalidades de ervas
daninhas, e sim analisar a natureza do terreno que ensejou sua
propagação. O pensamento crítico no Brasil precisa fazer mais “ciência
do solo” e menos “botânica”. Sem isso, não saberemos o que fazer para
minorar essa predominância avassaladora das “raízes retrógradas”. O
socialismo requentado não exige grandes malabarismos intelectuais por
parte dos doutrinadores para torná-lo palatável porque o senso comum
brasileiro é receptivo a ele. A intelligentsia, ou a burritsia, manipula
muito bem as carências propondo soluções fáceis que, com o tempo,
pioram o que já não era bom. Não buscamos enfrentar os problemas
cotidianos que nos afligem. Queremos a completa redenção coletiva. Por
isso não saímos da pré-adolescência. O que o Brasil vai ser quando
ingressar na maioridade? Não damos maior atenção ao que objetivamente
precisa ser combatido e que é indispensável para melhorar nossa
qualidade de vida: um ambiente de confiança institucional para que cada
um possa dar o melhor de si.
O Brasil
é o país das cores e dos sabores. O muito sol se faz acompanhar de
emoção à flor da pele. O espaço sensorial aguçado torna a afetividade
mais forte que o distanciamento crítico. Sendo esse o caso, cumpre
entender como ideias tristonhas, presas a modelos autoritários falidos
no mundo todo, despertam tanta adesão. O que está por ser elucidado é
como velhos esquemas de pensamento que se incrustaram em nosso senso
comum puderam ser manobrados pelos intelectuais militantes de modo a
harmonizá-los com a vulgata marxista e com sua retradução para a fase
pós-muro do ideário socialista. Não adianta lamentar a desatenção dos
que se distraem com o espetáculo perdendo de vista o fio da história.
Para a maioria das pessoas, o mundo é um palco onde se sucedem cenas
cujos principais atrativos são as cores e os movimentos. São atos e
imagens sem concatenação, sem nexos causais. Os processos que
transformam dramas em tragédias explicam a história dos sofrimentos
coletivos. Só que para quem acompanha o que se passa no mundo como uma
teatralização da(s) aventura(s) humana(s), tudo se reduz a saber quem
morre no começo, no meio ou no fim.
No
Brasil há muito tempo predomina o laxismo cínico: se o sistema social é
injusto nada mais justo que a leniência com as condutas impróprias. O
erro está em se querer ter na terra o que só no mar há, e vice-versa. A
ideologização e a incompetência dão força ao mecanismo de negação dos
problemas, o que faz com que se multipliquem e se agravem. E o curioso é
que essas ideologias que produzem essa teratologia são as que
cinicamente se propõem a combater seus efeitos. Esse é o cruel círculo
vicioso. As ideias que afugentam investimentos, que aumentam a
desconfiança entre os agentes são as, que invocando a retórica fácil do
social, fingem pretender equacionar os problemas que elas mesmas ajudam a
criar. Uma sociedade assim cindida dispersa energias, enfraquece os
laços interpessoais e a coesão comunitária estimulando desvios éticos.
A
arrogância sem lastro cognitivo não se dá conta de que as mesmas
dificuldades que existem para se conhecer o microcosmo que cada um de
nós é existem quando se tenta desvendar como funciona a complexa máquina
social. Talvez as pessoas que menos resolvem seus problemas sejam as
que se sentem mais capazes de equacionar os velhos dramas da humanidade.
Sendo difícil lidar com o próximo – e mais ainda amá-lo –, o escapismo
consiste em invocar um amor abstrato à humanidade. O mundo hoje é uma
grande farsa: em público quase todo mundo tem bom comportamento, é
politicamente correto; na vida privada, ninguém se entende, o pau come.
Desse modo, as pessoas tiram de suas costas sua cota de
responsabilidade. E se reconciliam consigo mesmas apregoando que a
sociedade só não é melhor por culpa de suas engrenagens. É tudo que uma
alma com segundas intenções, delas consciente ou não, precisa para
reduzir a boa consciência à militância política. O século XX não acabou:
as vítimas dos pogroms ideológicos deambulam como sombras pelo mundo
atual. São esqueletos atrás de sua corporeidade e de seus algozes. O
passado nunca aceita ficar confinado ao museu das lembranças. Quando não
é superado, impede o futuro de chegar. As paixões cegas,
independentemente de serem ou não subprodutos da feroz corrida pelo
escasso, sempre interferirão nos modos de viver. Nunca será a ação
humana expressão de uma racionalidade pura. Entre o pensar e o agir
ocorre um milhão de minúsculos processos que constroem as pontes entre o
abstrato e o concreto. O fogo das paixões interage com o gelo da razão,
e por isso se abrem caminhos de incerteza. (Revista Amálgama).
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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