MEDIÇÃO DE TERRA

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MEDIÇÃO DE TERRAS

segunda-feira, 31 de outubro de 2016

Quem será o próximo – Cristian Margiotti


A Folha de São Paulo trouxe, excepcionalmente hoje, um excelente artigo escrito em sua área de debates. Fato tão raro e texto tão necessário fazem com que abramos uma exceção e o republiquemos por aqui na íntegra:

Quem será o próximo

No último dia de sua vida, minha mãe repetiu uma rotina que cumpria três vezes por semana. Acordou, como de costume, às 6h da manhã e, por volta das 6h30, chegou ao parque municipal onde caminharia. Aos 59 anos, vaidosa e cheia de energia, Tereza adorava cuidar da saúde e das questões espirituais.
Menos de 15 minutos depois, foi abordada por um criminoso que a arrastou até um trecho de mato alto, a amordaçou, amarrou seus pés e mãos com a própria roupa, a agrediu, a estuprou e a esfaqueou até a morte, valendo-se de duas facas.
Como se a barbárie não fosse suficiente, deixou-a desfigurada e arrancou-lhe os olhos. Não vi nem quero ver as fotos que integram o laudo do Instituto Médico Legal. Sei que são chocantes. Prefiro guardar na memória a imagem da última vez em que vi minha mãe, três dias antes do macabro 30 de setembro.
Vivíamos no que, no passado, chamaríamos de típica cidade do interior paulista: pacífica e ordeira, ainda que não tão pequena assim. Localizada a 270 quilômetros da capital, Araraquara tem menos de 150 mil habitantes.
Atualmente, a típica cidade do interior paulista nada tem de diferente da maior parte das cidades brasileiras de qualquer tamanho: estão todas tomadas pelo medo.
Medo causado pela livre circulação de pessoas que não poderiam estar nas ruas, a exemplo do homem que a assassinou, que conta com diversas passagens pela polícia e condenações por tráfico de drogas.
Havia contra ele uma ordem judicial de internação compulsória numa clínica psiquiátrica. O pedido partiu de sua família, que buscava tratamento para seu transtorno mental provocado pelo excesso do uso de drogas. Ele foi recolhido no dia 22 de setembro, mas fugiu três dias depois, sem qualquer dificuldade. A Polícia Militar foi informada da fuga.
O cidadão chegou a atacar duas garotas, que escaparam da tentativa de estupro. Roubou, em seguida, uma bicicleta, foi pego pela Polícia Militar, mas acabou liberado, segundo se sabe, em razão da lei eleitoral -nenhum eleitor pode ser preso, salvo em flagrante ou em cumprimento de sentença criminal, cinco dias antes da eleição.
Todas as autoridades envolvidas nessa sequência de fatos têm uma boa explicação para justificar o que fizeram. Acontece isso sempre. Ninguém nunca tem culpa. Pior, ninguém nunca tem responsabilidade.
Quando foi achado em sua casa, o criminoso estava com as duas facas, seu corpo continha marcas de luta e segurava o celular da minha mãe. Levado à delegacia, foi reconhecido pelas garotas que tentou violentar, horas antes de sacrificar minha mãe.
Todos os dias, 160 brasileiros são assassinados. Isso dá 4.800 homicídios por mês, quase 60 mil óbitos violentos por ano. De cada 10 pessoas mortas no mundo, 1 é brasileira.
Sempre observei esses números como estatísticas que envergonham o país, até chegar a vez de minha mãe. Minha tristeza não seria menor se dona Tereza tivesse morrido ao ser atingida por um raio.
O vazio seria o mesmo, mas não estaria tomado pela revolta que me consome há mais de um mês. O Brasil gasta mais de R$ 200 bilhões por ano em segurança pública, possui quase 700 mil policiais civis e militares, sem contar as guardas municipais. Ainda assim, estamos abandonados à própria sorte.
O Brasil vive um momento de indignação contra a corrupção. A Lava Jato vem promovendo uma faxina, mesmo que setorial, nas relações entre o Estado e o meio empresarial. Isso tudo graças à ação de um grupo restrito de integrantes da polícia, do Ministério Público e de um único juiz. Empresários, intermediários e políticos foram presos.
Com a ajuda do instituto da delação premiada, criminosos de colarinho branco denunciam uns aos outros, ajudando a desbaratar quadrilhas organizadas.
Pode ser uma fantasia minha, mas creio que o Brasil não será a mesma terra de ninguém de antes.
Mas quando conheceremos uma Lava Jato para enfrentar a onda de homicídios que banalizou a vida em nosso país? Quantos ainda precisarão morrer? Agora foi minha mãe, quem será o próximo?
CRISTIAN MARGIOTTI, 41, advogado pós-graduado em direito civil e ambiental, é especializado no setor sucroalcoleiro
"Morte num cavalo pálido", de Gustave Doré
“Morte num cavalo pálido”, de Gustave Doré

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