Mais que os filósofos e os teólogos, os grandes escritores, os grandes ficcionistas russos interpretaram e contaram o mistério de Cristo e da Paixão de Cristo. Jaime Nogueira Pinto para o Observador:
Em
A Ideia Russa, o historiador Nicolai Berdyaev defende que as figuras do
pensamento religioso russo e da busca religiosa no século XIX não foram
filósofos, mas romancistas, como Dostoievski e Leo Tolstoi.
Para
o autor de As raízes e o sentido do comunismo russo e de outras obras
fundamentais para o entendimento da Rússia e do comunismo, a ficção de
Dostoievski é comparável, em novidade e alcance, à obra de Nietzsche ou
de Kierkegaard, já que é, fundamentalmente, ao escritor de Crime e
Castigo que se deve toda uma “nova antropologia”, que encara o homem
como “uma criatura contraditória, trágica, altamente infeliz; e não
apenas sofredora, mas amante do sofrimento”.
Condenado pelo Grande Inquisidor de Dostoievski
Mas
se o sofrimento e a redenção pelo sofrimento estão presentes em toda a
obra de Dostoievski, estão-no especialmente no “Grande Inquisidor”, uma
parábola contada por Ivan a Aliócha nos Irmãos Karamazov. Na parábola,
Cristo, o Cristo evangélico, reaparece em Sevilha, no século XVI; anda
nas ruas, o povo reconhece-o, faz milagres, cura doentes, ressuscita uma
menina. Entretanto – estamos na Espanha da época áurea da Inquisição –
chega o Grande Inquisidor, manda prender Cristo e interroga-o. O Grande
Inquisidor encara a liberdade do Homem, a que lhe permite pecar e
perder-se, como um risco desnecessário, e considera Cristo um perigo
para a humanidade, porque entrega a Liberdade aos homens, incapazes de a
usarem com discernimento. E assim o Inquisidor volta a condenar Cristo.
Para ele só pelos caminhos do Mal, do Demónio, se pode chegar à unidade
dos homens: é preciso dar-lhes pão, satisfazer-lhes as necessidades
básicas e, porque é “fraca, pecaminosa e ignóbil” a raça a que
pertencem, controlar-lhes a consciência e a livre expressão. Jesus
cala-se perante o discurso do Inquisidor. A história é ambígua; o
Inquisidor parece um pessimista antropológico, que enuncia as grandes
forças que movem a Terra e os homens – que não são a Liberdade, o livre
arbítrio, a Verdade, a Justiça, o Amor, mas o milagre, o mistério e a
autoridade. Cristo não lhe responde, permanece calado durante todo o
interrogatório.
Tosltoi: “Istina”, e não “Pravda”
Leo
Tolstoi não vai tão fundo como Dostoievski na ética cristã, mas é, para
Nobokov, o maior dos escritores russos, um “pregador” laico que
influenciou com as suas histórias largos círculos da Intelligentsia e da
sociedade. Tolstoi lutava pelo aperfeiçoamento da escrita e da ficção,
mas era também um moralista com uma ética de Sermão da Montanha,
incutindo o complexo de culpa nas classes altas. Como insistia Nabokov, o
autor de Guerra e Paz mantinha, na sua alma e na sua pena, um diálogo
ou um combate entre a ética e a estética, entre o pregador e o artista,
sempre à procura da Verdade absoluta, da Istina, que não significa o
mesmo que Pravda, que é apenas a verdade relativa.
A
Istina é, para Nabokov, a verdade essencial, a verdade filosófica, a
Verdade com maiúscula. Pravda é a verdade correcta, a que não é mentira,
uma verdade de acordo com as regras, com o direito. Foi também entre
1918 e 1991 o nome do órgão oficial do Comité Central do Partido
Comunista da União Soviética. Verdade mais que relativa, diríamos.
Bulgakov: O Mal absoluto visita o mal relativo
Esta
procura da Verdade continuou a marcar os escritores russos que, no
século XX, presenciaram a passagem da autocracia czarista (limitada a
partir de 1905) ao socialismo totalitário, depois da revolução
bolchevique de 1917. Um deles – e para mim um dos mais extraordinários,
pela obra e pela vida – é Bulgakov.
Nascido
em Kiev em 1891, Mikhail Bulgakov, licenciou-se em medicina na Escola
Médica de Kiev, em 1916, e voluntariou-se como médico militar no
Exército Branco, durante a guerra civil. Depois da guerra, em vez de
emigrar como muitos dos vencidos, foi para Moscovo, onde iniciou uma
carreira literária, publicando várias obras.
Mas
é claro que, dado o seu passado e a sua crítica implícita ao regime,
foi denunciado e marginalizado pela Associação Russa dos Escritores
Proletários, que tutelava, censurava e congelava escritos e escritores.
Na desgraça teve alguma sorte, não acabando numa cela da Lubianka ou num
campo de trabalhos forçados. A sorte foi que, o seu livro A Guarda
Branca, teve uma versão teatral como Os Dias dos Turbin, exibida no
Teatro de Arte de Moscovo; Estaline gostou da peça e foi vê-la quinze
vezes. E quando Bulgakov, sem trabalho, com os livros sem publicação,
quis, em 1930, emigrar, o Czar Vermelho telefonou-lhe e convenceu-o a
ficar na Rússia, dizendo-lhe que longe da pátria os escritores russos
secavam, e arranjando-lhe um lugar modesto como consultor do Teatro de
Arte, de onde Bulgakov tinha sido afastado por Stanislavsky. Mas a
perseguição burocrática continuou e Bulgakov, que em 1932 se casou pela
terceira vez, com Elena Shilovskaya, não viu mais as suas obras
publicadas. Nestas obras não publicadas estava O Mestre e Margarida, que
começara a escrever em 1928.
É
um romance iniciático, fascinante, às vezes caótico, mas que além da
história da paixão do Mestre por Margarida, narra a visita a Moscovo, à
Moscovo comunista do pós-leninismo dos anos vinte, de Woland, uma
personagem que encarna o Mal, talvez o próprio Demónio.
Aqui
não posso deixar de me lembrar do professor Jorge Borges de Macedo,
numa conversa sobre Bulgakov e O Mestre e Margarida: “O Demónio, o Mal
absoluto, visita Moscovo comunista, o mal relativo. E os do mal
relativo, os comunistas, não acreditam no Mal absoluto… Woland mata
alguns de forma mágica, transcendente e comprometida, logo impossível
para estes pequenos adeptos do materialismo científico”, dizia ele.
Assim,
no início do romance, Mikhail Berlioz, um importante editor do regime,
afirma categoricamente a verdade comunista: “o principal não é se Jesus
era bom ou mau, mas que esse mesmo Jesus, como pessoa, nunca existiu no
mundo e todas as histórias sobre ele eram mera ficção […] os cristãos
criaram um Jesus, que, de facto, nunca existiu”.
Aí
aparece o mágico, o professor Woland, o próprio Satã, que vai dizendo,
sussurrando, também categoricamente ao editor comunista:
“Jesus existiu… não são precisos muitos pontos de vista. Ele existiu, é tudo…”
Jesus
Cristo entra no romance, numa narrativa imaginada do seu julgamento por
Pôncio Pilatos, a lembrar a visão do Jesus silencioso do Grande
Inquisidor de Dostoievski. Mas o Jesus de Bulgakov fala, responde. É um
homem simples, bom, mas ingénuo. Um optimista antropológico que acha que
todos os homens são bons. Pilatos começa por acusá-lo de querer
instigar o povo a destruir o Templo, mas Jesus responde: “Nunca,
Hegemon…” E diz a Pilatos que o que disse era que o templo da velha fé
cairia e que um novo Templo da Verdade seria construído. O Jesus de O
Mestre e Margarida é humilde, simples, aparentemente longe do Filho de
Deus, ou do que os homens imaginavam que podia ser o Filho de Deus.
Bulgakov afasta-se em muitos pormenores da narrativa evangélica, embora
haja um seguidor de Jesus, Mateus Levi, que o acompanha e toma notas e
que, num diálogo com Woland, parece confirmar que ele é Ele ou que ele é
também Deus. Bulgakov deixa de parte muita da narrativa evangélica para
guardar o essencial. No fim, por uma série de convergências, típicas da
intencionalidade caótica e consequente de Bulgakov, pode concluir-se
que há um Deus; que Jesus viveu e morreu e que em sentido espiritual
ainda vive e está activo no mundo; que não há pessoas essencialmente más
e que todas as pessoas são boas; que os homens chegarão, eventualmente,
ao Reino da Verdade e da Justiça, onde não haverá lugar para a
autoridade opressora; e que apesar dos erros e pecados na vida, é sempre
possível esperar a Redenção.
E
neste romance exótico e admirável, a mensagem mais poderosa dada a
partir de um o retrato informal e original de Cristo, é o Jesus da
Paixão e da Redenção, um Jesus que acaba por perdoar e receber no seu
Reino o Pôncio Pilatos que o condenou por medo.
O livro da vida de Pasternak
O
último destes quatro escritores é Boris Pasternak, prémio Nobel da
Literatura em 1958. Pasternak nasceu em Moscovo em 1890 numa família
abastada de judeus russos, que se reclamavam descendentes do judeu
português Isaac Abarbanel. Quando da revolução bolchevique na Rússia,
melhor, quando da revolução democrática contra a monarquia, causada
pelos desastres da Guerra, Pasternak escreveu um poema, “A revolução
russa”, em que associava a revolução de Fevereiro de 1917 a um triunfo
dos ideais cristãos de igualdade e fraternidade: “E o socialismo de
Cristo soprou livre e fundo”.
Esta
associação do cristianismo e do cristianismo dos primeiros cristãos ao
marxismo, fazendo de Cristo um herói do Proletariado, tinha os seus
pergaminhos em alguns autores comunistas, como Rosa Luxemburgo e Karl
Kautsky. Embora o materialismo dialéctico faça parte da ortodoxia
comunista, embora Marx seja claro quando nega a existência de um “mundo
invisível”, não apreensível pelos cinco sentidos, e Lenine insista na
ilusão criada pela religião, cúmplice dos poderes políticos
estabelecidos, embora a realização do “reino fraterno e igualitário do
socialismo” na terra se fizesse pela violência e pelo terror, havia uma
aproximação evidente entre o marxismo e cristianismo, até porque a
fraternidade, mesmo desvirtuada, pressupõe um Pai comum e a igualdade,
mesmo imposta, é dificilmente justificável sem a revelação cristã. E as
interpretações de alguns textos evangélicos, como o Sermão da Montanha,
podiam der origem a alguma ambiguidade entre a fraternidade igualitária
do cristianismo e a fraternidade da utopia marxista. Anatoli
Lunatcharski, que em Outubro de 1917 foi nomeado pelo governo
bolchevique como responsável pelo Comissariado do Povo para a Educação,
chamou à revolução bolchevique a “nova páscoa revolucionária”. Talvez
porque a maioria dos russos, sobretudo das classes populares, era
religiosa, fiel à Igreja Ortodoxa.
De
qualquer forma, o poema de Pasternak, que começa, na primeira parte,
com “o sopro livre e fundo do socialismo de Cristo” na Revolução de
Fevereiro, contrai-se abrupta e violentamente em Outubro, na segunda
parte, com a trágica e mortífera chegada dos bolcheviques ao poder.
A
Pasternak aconteceu o que aconteceu a Bulgakov. Nos anos 30, tornou-se
suspeito aos olhos do regime e foi marginalizado; mas Estaline que, por
alguma razão, gostava dos seus poemas, decidiu poupá-lo, protegendo-o
dos seus esbirros.
Quando,
na destalinização, Pasternak concluiu o Doutor Jivago, em 1956, o
romance, por sair dos cânones soviéticos, não foi publicado na URSS e
acabou por ser publicado em Itália, depois de uma intrincada odisseia.
Ao tempo dizia-se que a CIA publicara simultaneamente uma edição pirata
em russo.
O
livro, em parte autobiográfico, está impregnado pelo cristianismo da
velha Rússia e de todas as idades dos Homens, sobrevivente e resistente
na ditadura do materialismo científico.
A
última parte do Doutor Jivago são os poemas do protagonista, Yuri
Jivago. E o último destes poemas, o final, “quando é chegado o livro da
vida à página mais sagrada que contém”, chama-se, significativamente, “O
Jardim de Getsémani”, ou, na tradução de David Mourão Ferreira, “O
Horto de Getsémani”: a agonia de Cristo que precede a prisão e o
calvário.
Ao
contrário de Bulgakov, que usa criativamente os Evangelhos, Pasternak é
mais ortodoxo, sobretudo aqui, no fim, na morte – na de Yuri Jivago, na
sua, na nossa, na morte de Cristo. E é o próprio Cristo que fala, em
fim de livro, na hora de maior sofrimento, na hora da Sua entrega ou da
Sua “descida ao túmulo em tormento voluntário”, para se erguer ao
terceiro dia e nos resgatar.
Santa Páscoa da Ressurreição!
Postado há 18 hours ago por Orlando Tambosi
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