MEDIÇÃO DE TERRA

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sábado, 30 de março de 2024

Caso Monark: opinião idiota não deve ser crime

 BLOG  ORLANDO  TAMBOSI


Se a Justiça acatar o pedido do MP paulista, potencialmente outros debates públicos sobre temas legais sensíveis estarão barrados. Jerônimo Teixeira para a Crusoé:


Monark já apareceu nesta coluna antes, muito de passagem, em um texto  intitulado “Crime de opinião”. Não citei nem esse nome-fantasia, nem seu nome no registro civil, Bruno Aiub. Apenas usei o “vídeo em que o youtuber com nome de bicicleta defende a legalização de partidos nazistas” como exemplo genérico do que a justiça brasileira hoje considera crime de opinião.

De exemplo genérico, Monark converteu-se em caso singular. A singularidade está na punição que o Ministério Público de São Paulo quer impor a uma opinião tida como criminosa: 4 milhões de reais.

Tecnicamente, não se atribuiu um crime a Monark. O MP apresentou à Justiça uma ação civil contra Bruno Aiub. Para fins práticos, porém, a exorbitância da multa solicitada criminaliza a opinião que a antiga estrela do Flow Podcast externou em um programa no qual recebeu os deputados federais Tabata Amaral e Kim Kataguiri. Monark, ao que parece, alcançou certo sucesso com o Flow. Não sei se ele é desses que fez fortuna no YouTube. Talvez quatro milhões seja troco para ele. Para mim e para a maioria dos jornalistas que conheço, seria um baque tremendo. Se a Justiça acolher a multa pedida pelo MP, estará efetivamente cerceando a discussão sobre a legalidade do partido nazista.

Enquanto a sentença não sai e a opinião ainda é livre, vou dizer aqui o que penso sobre a legalização do nazismo: é uma ideia estúpida. Sou contra.

Raramente falo em “limites da liberdade de expressão”. Já temos por aí muitos políticos, jornalistas, juristas e togados querendo apertar esses limites até o ponto em que só lugares comuns professados por políticos, jornalistas, juristas e togados sejam admitidos pela lei. Mas não é preciso se juntar ao coro dos censores para reconhecer que certos limites devem, sim, existir. Não se admite, por exemplo, a pregação aberta do extermínio de judeus, que é uma pedra fundamental do nazismo. Retire o antissemitismo rábido do programa partidário, e o partido já não poderá se proclamar nazista.

Abrigado pelas instituições democráticas, o racismo nazista não seria meramente teórico, nem “estrutural”. Partidos não vivem no éter das formas platônicas: eles têm projetos e se movimentam para realizá-los. Imagine um deputado do Partido Nacional-Socialista propondo emendas à reforma tributária para sobretaxar empresas cujos proprietários são judeus. Ou um senador usando o orçamento secreto para financiar escolas segregadas em seu reduto eleitoral.

“Mas e partido comunista pode?”, dirá alguém. Essa objeção é um cacoete da guerra cultural, sempre travada em esquemas binários. Mas ok, vou arriscar uma resposta: embora seja comprovadamente uma ideia desastrosa que há muito deveria ter sumido do mapa das possibilidades políticas, o comunismo é, mais digamos, plástico em seu programa. Sob as democracias liberais, os partidos comunistas se aburguesaram, preferindo cômodas sinecuras estatais à revolução. Desconfio que muitos jovens comunistas ainda sonham em fuzilar contrarrevolucionários, mas outros tantos desfraldam a bandeira vermelha com a foice e o martelo imaginando que assim defendem a igualdade, a justiça social, as lutas populares – e a Petrobras, patrimônio de todos os brasileiros! Já a mensagem da suástica é estreita e inequívoca: governo autocrático forte em um país livre de judeus.

É natural que o leitor discorde dessas avaliações. Em uma mesa de bar, ele talvez me convencesse de que meus argumentos são falhos (já aviso: sou mais propenso a mudar minha posição sobre os partidos comunistas do que a admitir a legalidade do nazismo). Quero crer que essa conversa hipotética não seria uma reedição do bizantino debate sobre qual é o pior regime totalitário do século XX: todos na mesa concordariam que comunismo e nazismo são monstruosos, e isso basta.

Meu ponto aqui – já muito bem apresentado, aliás, por Lygia Maria, colunista da Folha de S. Paulo – é que defender a legalidade de determinado partido não implica em adesão a esse partido. Monark não fez “apologia do nazismo”. Apenas expressou seu ponto de vista de forma muito desastrada. “Se um cara quiser ser antijudeu, ele tem o direito de ser”, disse. É uma declaração idiota, sim – mas desde quando a idiotia merece multa?

Se a Justiça acatar o pedido do MP paulista, a hipotética conversa de boteco que delineei acima se tornará inviável. Potencialmente, outros debates públicos sobre temas legais sensíveis estarão barrados. Quem se arrisca a desembolsar milhões para participar de um debate?

Sou contrário à existência legal de um partido nazista. Em tese, essa posição não põe minhas finanças em perigo. Ainda assim, a multa limita minha autonomia. No momento em que escrevo este artigo – tarde de terça-feira, 26 de março –, minha opinião sobre o assunto é livre. Se amanhã ou depois a Justiça efetivamente exigir os quatro milhões de Monark, essa mesma opinião se tornará compulsória. Não terei dinheiro para mudar de ideia.
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