Será possível contemplar, ainda que na surdina, algumas virtudes no consumo inteligente do líquido? João Pereira Coutinho para a FSP:
Centro de Lisboa.
Estou sentado na minha mesa, sozinho, a escutar as conversas dos
outros. Dizem que é feio. Talvez seja. Prefiro encarar o hábito como uma
forma de exercitar a audição antes que a velhice ajuste contas comigo.
Um
casal inglês (acho) consulta o cardápio e faz o pedido. O garçom anota e
pergunta se querem ver a carta de vinhos. "Tem sangria?", pergunta o
rapaz.
O
garçom faz a mesma cara que Farinelli não conseguiu esconder quando lhe
disseram que havia um preço a pagar para se dedicar ao canto lírico e
só então responde: "Não, temos bons vinhos". Optaram por cerveja.
Disse que o casal era inglês, mas talvez fosse irlandês. A Irlanda tenciona colocar avisos nas garrafas sobre os malefícios do vinho, tal como já acontece nos pacotes de cigarros. As jarras de sangria, até ver, estão a salvo.
Deus
inventou o álcool para que os irlandeses não conquistassem o mundo,
dizia-se nos velhos tempos. Não mais. A religião da Saúde só descansa
quando converter o mundo aos seus dogmas.
O pior é que a Irlanda não é caso único. Leio nos jornais lusitanos que a União Europeia pondera alargar a prática a todos os países do clube. Alguns, que fizeram do vinho uma arte, protestam. Como Portugal, abençoada pátria.
O
espírito do tempo não aconselha otimismos. Da próxima vez que o leitor
vier a Lisboa, não será de excluir que a palavra "cirrose", ou a imagem
de uma, esteja a decorar um bom tinto do Douro.
É
nessas alturas que uma pessoa tem de dizer o óbvio, porque há sempre
uns abstêmios que não entendem: sim, o vinho pode adoecer uma criatura.
Como, aliás, incontáveis substâncias que existem sobre a Terra para
perdição das almas.
Mas será possível contemplar, ainda que na surdina, algumas virtudes no consumo inteligente do líquido?
O saudoso Roger Scruton,
no seu "Bebo, Logo Existo" (já tem tradução no Brasil; corra logo,
antes que proíbam), lembrava que uma sociedade tem algo a ganhar com
esse consumo inteligente. Como?
Aliando
o vinho ao pensamento, à conversa e à intimidade –a "cultura de
simpósio", como chama Scruton, em direta referência aos clássicos.
O
vinho é então uma celebração da existência, da amizade e da imaginação
–um momento de abertura à vida e de aceitação das suas dissonâncias.
Para
Scruton, é tão perigoso beber de estômago vazio como de cabeça vazia
–uma grande verdade que, essa, sim, deveria estar nos rótulos das
garrafas. Os maus bebedores, na maioria dos casos, são sobretudo falhos
de curiosidade, ironia e perdão. São narcísicos e chatos.
Termino
o meu almoço, pago, levanto-me e, passando pelo casal inglês, reparo
que os copos de cerveja se acumulam sobre a mesa. Os dois, com os rostos
enfiados nas respetivas rações, não trocam uma única palavra.
De fato, servir vinho a qualquer um deles seria um imperdoável desperdício.
Postado há 3 weeks ago por Orlando Tambosi
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