MEDIÇÃO DE TERRA

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MEDIÇÃO DE TERRAS

domingo, 29 de outubro de 2023

Um excludente de ilicitude para chamar de seu

BLOG  ORLANDO  TAMBOSI

Para o cidadão de bem, o problema não é cometer um ato ilícito ou reprovável: é ver outros fazendo isso e se dando bem enquanto ele não consegue. A crônica de Ruy Goiaba para a Crusoé:


Vocês se lembram da polêmica que houve quando o governo de Jair Bolsonaro incluiu naquele pacote anticrime de Sergio Moro uma ampliação do “excludente de ilicitude”? A expressão é usada para designar uma situação em que a pessoa que comete um crime não será punida por ele — matar em legítima defesa, por exemplo, caso já contemplado pelo Código Penal brasileiro. A proposta de Bolsonaro previa que o agente de segurança também poderia não ser punido “se o excesso decorrer de escusável medo, surpresa ou violenta emoção”. Na época muita gente, principalmente do lado dito progressista da Força, alegou que isso equivaleria a conceder aos policiais uma licença para matar (quer dizer, ainda mais do que já matam na Bahia e em outros estados).

Demorou para cair a ficha de que estamos no Bananão, e a alma bananeira é basicamente definida por aquela imortal frase de Sérgio Porto/Stanislaw Ponte Preta: “Alto lá! Ou nos locupletamos todos, ou restaure-se a moralidade” (não deve ser exatamente isso; quem googlar vai achar umas 200 versões diferentes). Para o cidadão de bem, o problema não é cometer um ato ilícito ou reprovável: é ver outros fazendo isso e se dando bem enquanto ele não consegue. Só fui me dar conta da ligação entre o excludente e a frase do Lalau depois da patética história envolvendo Anielle Franco, ministra da Igualdade Racial, nesta semana.

Resumindo para você que estava em Marte nos últimos dias e por acaso me lê agora: Anielle publicou um vídeo nas redes sociais em que aparece, bem blogueirinha, embarcando num avião da FAB para ir ver o Mengão jogar a final da Copa do Brasil contra o São Paulo — quer dizer, para assinar um protocolo de combate ao racismo no esporte, o que em tese poderia ser feito em Brasília num dia qualquer sem final de campeonato ou até digitalmente. Cobrada pelo caso, a ministra se abespinhou: achou inacreditável que a cobrassem, alegou que estava fazendo o sacrifício de ficar longe da família num domingo (o que sua expressão no vídeo de blogueirinha desmente 100%) e, claro, se disse vítima de violência de gênero e de raça, pois mulher preta. Mais ou menos como se Juscelino Filho, o ministro das Comunicações que pegou aviãozinho da FAB para participar de leilões de cavalos de raça, se defendesse alegando preconceito antinordestino.

(É o caso de perguntar se o jetom de R$ 36 mil a que Anielle faz jus no conselho da metalúrgica Tupy também é para combater a violência de gênero e de raça.)

A coisa ficou ainda pior, contudo, quando vieram à tona os posts de Marcelle Decothé, chefe da assessoria especial de Anielle e também flamenguista, que acompanhou a ministra ao jogo no Morumbi. Em seu Instagram, Decothé publicou uma foto dizendo que os são-paulinos eram uma “torcida branca que não canta, descendente de europeu safade. Pior tudo de pauliste…”. Numa tacada só, a assessora da Igualdade Racial conseguiu ser preconceituosa com a torcida do São Paulo — a terceira maior do país, em que aliás os brancos são minoria — e com paulistas em geral; coisa superfofa, muito bacaninha mesmo.

Como na internet os prints são eternos, logo descobriram uma série de postagens em que Decothé atacava a “mediocridade branca”, “branca fazendo branquice” e até o “suor branco” dos frequentadores da academia em quem ela esbarrava. Para completar, uma reportagem do Estadão mostrou que a Igualdade Racial gastou metade de suas verbas de 2023 com viagens: a assessora de Anielle havia feito 19, ou uma a cada 12 dias, incluindo países como Portugal e Espanha, apesar de serem lugares repletos de europeus safades e colonizadores.

Decothé foi exonerade, mas até hoje é possível ver doutos frequentadores das redes alegando que ela NÃO foi racista, apesar das abundantes evidências dos parágrafos anteriores. A conversa é a de sempre: não pode existir racismo de negros contra brancos, só há “racismo estrutural” ou, sempre acompanhada daquele arzinho professoral, “não existe racismo reverso” — exemplo perfeito da falácia do espantalho, aquela em que o debatedor distorce intencionalmente o argumento do adversário: a maioria dos críticos da ex-assessora não usa a expressão “racismo reverso” porque vê o caso Decothé como racismo, puro e simples. Não importa o vetor (a propósito, é isso que diz a letra da lei: confiram em L7716 e L14532). Você diria que é impossível um oriental, ou um judeu, ser alvo de racismo porque os seus antepassados não foram escravizados no Brasil?

O que essa turma quer — como apontou Wilson Gomes, professor da UFBA, colunista da Folha e, caso isso interesse, negro — é obter um excludente de ilicitude para chamar de seu; para poder ser racista à vontade sem sofrer as consequências legais disso. E não só: também para poder fazer uma série de coisas reprováveis, incluindo viajar de avião da FAB para ir a jogo de futebol ou leilão de cavalos de raça, sem ser contestado (é só jogar a carta do preconceito contra mulher, negro, nordestino etc.). Não custa lembrar que o identitarismo é um jogo que também pode ser, e é, jogado pela direita: por movimentos anti-imigração na Europa ou ultraconservadores religiosos no Brasil, por exemplo.

Sem nenhuma esperança de que as coisas melhorem, só me resta encontrar algum excludente para minhas ilicitudes favoritas. Será que acusar de gordofobia aqueles que se atrevem a me criticar (narrador: “ninguém te lê, amigo”) resolve? Um dia levo um papo com Delfim Netto e Flávio Dino para saber se funciona.

***

A GOIABICE DA SEMANA

Foi uma barbada: nada, nem os piores momentos do affair Anielle-Marcelle, conseguiria ser tão ridículo quanto o Lula teletubbie (foto) postado por Paulo Pimenta, o chefe da Secom da Presidência, em suas redes sociais. Transformar o Deus-Sol em Deus-Solzinho provavelmente tinha como objetivo promover uma comunicação fofinha e tratar os eleitores como débeis mentais; o efeito foi uma estética kitsch que poderia perfeitamente ser usada por Kim Jong-un na Coreia do Norte. Não há como negar que, como diriam no interior paulista, a coisa orna.


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