Para o cidadão de bem, o problema não é cometer um ato ilícito ou reprovável: é ver outros fazendo isso e se dando bem enquanto ele não consegue. A crônica de Ruy Goiaba para a Crusoé:
Vocês
se lembram da polêmica que houve quando o governo de Jair Bolsonaro
incluiu naquele pacote anticrime de Sergio Moro uma ampliação do
“excludente de ilicitude”? A expressão é usada para designar uma
situação em que a pessoa que comete um crime não será punida por ele —
matar em legítima defesa, por exemplo, caso já contemplado pelo Código
Penal brasileiro. A proposta de Bolsonaro previa que o agente de
segurança também poderia não ser punido “se o excesso decorrer de
escusável medo, surpresa ou violenta emoção”. Na época muita gente,
principalmente do lado dito progressista da Força, alegou que isso
equivaleria a conceder aos policiais uma licença para matar (quer dizer,
ainda mais do que já matam na Bahia e em outros estados).
Demorou
para cair a ficha de que estamos no Bananão, e a alma bananeira é
basicamente definida por aquela imortal frase de Sérgio Porto/Stanislaw
Ponte Preta: “Alto lá! Ou nos locupletamos todos, ou restaure-se a
moralidade” (não deve ser exatamente isso; quem googlar vai achar umas
200 versões diferentes). Para o cidadão de bem, o problema não é cometer
um ato ilícito ou reprovável: é ver outros fazendo isso e se dando bem
enquanto ele não consegue. Só fui me dar conta da ligação entre o
excludente e a frase do Lalau depois da patética história envolvendo
Anielle Franco, ministra da Igualdade Racial, nesta semana.
Resumindo
para você que estava em Marte nos últimos dias e por acaso me lê agora:
Anielle publicou um vídeo nas redes sociais em que aparece, bem
blogueirinha, embarcando num avião da FAB para ir ver o Mengão
jogar a final da Copa do Brasil contra o São Paulo — quer dizer, para
assinar um protocolo de combate ao racismo no esporte, o que em tese
poderia ser feito em Brasília num dia qualquer sem final de campeonato
ou até digitalmente. Cobrada pelo caso, a ministra se abespinhou: achou
inacreditável que a cobrassem, alegou que estava fazendo o sacrifício de
ficar longe da família num domingo (o que sua expressão no vídeo de
blogueirinha desmente 100%) e, claro, se disse vítima de violência de
gênero e de raça, pois mulher preta. Mais ou menos como se Juscelino
Filho, o ministro das Comunicações que pegou aviãozinho da FAB para participar de leilões de cavalos de raça, se defendesse alegando preconceito antinordestino.
(É o caso de perguntar se o jetom de R$ 36 mil a que Anielle faz jus no conselho da metalúrgica Tupy também é para combater a violência de gênero e de raça.)
A
coisa ficou ainda pior, contudo, quando vieram à tona os posts de
Marcelle Decothé, chefe da assessoria especial de Anielle e também
flamenguista, que acompanhou a ministra ao jogo no Morumbi. Em seu
Instagram, Decothé publicou uma foto dizendo que os são-paulinos eram
uma “torcida branca que não canta, descendente de europeu safade. Pior
tudo de pauliste…”. Numa tacada só, a assessora da Igualdade Racial
conseguiu ser preconceituosa com a torcida do São Paulo — a terceira
maior do país, em que aliás os brancos são minoria — e com paulistas em geral; coisa superfofa, muito bacaninha mesmo.
Como
na internet os prints são eternos, logo descobriram uma série de
postagens em que Decothé atacava a “mediocridade branca”, “branca
fazendo branquice” e até o “suor branco” dos frequentadores da academia
em quem ela esbarrava. Para completar, uma reportagem do Estadão mostrou
que a Igualdade Racial gastou metade de suas verbas de 2023 com
viagens: a assessora de Anielle havia feito 19, ou uma a cada 12 dias,
incluindo países como Portugal e Espanha, apesar de serem lugares
repletos de europeus safades e colonizadores.
Decothé
foi exonerade, mas até hoje é possível ver doutos frequentadores das
redes alegando que ela NÃO foi racista, apesar das abundantes evidências
dos parágrafos anteriores. A conversa é a de sempre: não pode existir
racismo de negros contra brancos, só há “racismo estrutural” ou, sempre
acompanhada daquele arzinho professoral, “não existe racismo reverso” —
exemplo perfeito da falácia do espantalho, aquela em que o debatedor
distorce intencionalmente o argumento do adversário: a maioria dos
críticos da ex-assessora não usa a expressão “racismo reverso” porque vê
o caso Decothé como racismo, puro e simples. Não importa o vetor (a
propósito, é isso que diz a letra da lei: confiram em L7716 e L14532).
Você diria que é impossível um oriental, ou um judeu, ser alvo de
racismo porque os seus antepassados não foram escravizados no Brasil?
O
que essa turma quer — como apontou Wilson Gomes, professor da UFBA,
colunista da Folha e, caso isso interesse, negro — é obter um excludente
de ilicitude para chamar de seu; para poder ser racista à vontade sem
sofrer as consequências legais disso. E não só: também para poder fazer
uma série de coisas reprováveis, incluindo viajar de avião da FAB para
ir a jogo de futebol ou leilão de cavalos de raça, sem ser contestado (é
só jogar a carta do preconceito contra mulher, negro, nordestino etc.).
Não custa lembrar que o identitarismo é um jogo que também pode ser, e
é, jogado pela direita: por movimentos anti-imigração na Europa ou
ultraconservadores religiosos no Brasil, por exemplo.
Sem
nenhuma esperança de que as coisas melhorem, só me resta encontrar
algum excludente para minhas ilicitudes favoritas. Será que acusar de
gordofobia aqueles que se atrevem a me criticar (narrador: “ninguém te
lê, amigo”) resolve? Um dia levo um papo com Delfim Netto e Flávio Dino
para saber se funciona.
***
A GOIABICE DA SEMANA
Foi
uma barbada: nada, nem os piores momentos do affair Anielle-Marcelle,
conseguiria ser tão ridículo quanto o Lula teletubbie (foto) postado por
Paulo Pimenta, o chefe da Secom da Presidência, em suas redes sociais.
Transformar o Deus-Sol em Deus-Solzinho provavelmente tinha como
objetivo promover uma comunicação fofinha e tratar os eleitores como
débeis mentais; o efeito foi uma estética kitsch que poderia
perfeitamente ser usada por Kim Jong-un na Coreia do Norte. Não há como
negar que, como diriam no interior paulista, a coisa orna.
Postado há 5 weeks ago por Orlando Tambosi
Nenhum comentário:
Postar um comentário