Demétrio Magnoli
Folha
Não se sabe ao certo o número de israelenses mantidos em cativeiro pelo Hamas. Dias atrás, porém, a organização terrorista capturou dois novos reféns, de alto perfil: António Guterres, secretário-geral da ONU, e o governo do Estado de Israel. O primeiro proferiu uma caprichosa justificativa para os atos de terror do 7/10. O segundo adotou como represália a negação de vistos a autoridades humanitárias da ONU, o que simboliza seu desprezo pela ajuda emergencial aos civis palestinos.
O discurso de Guterres na ONU qualificou os atentados do Hamas como injustificáveis para, na sequência, argumentar que eles “não ocorreram num vácuo”, mas no contexto de “56 anos de ocupação sufocante”.
MESMAS VERSÕES – No fundo, é a mesma lógica de vozes estatais da direita, como o presidente turco Erdogan, que descreveu o Hamas como “um grupo de libertação”, e da esquerda acadêmica, como os professores da USP que atribuíram “esse ponto de violência extremada” à ocupação dos territórios palestinos.
A recusa a uma condenação incondicional (por oposição à condenação retórica protocolar) do terror do Hamas descortina, além da ausência de bússola moral, uma avaliação histórica envenenada por prévias opções ideológicas.
De fato, porém, o Hamas não surgiu da ocupação, não combate a ocupação e não prega a convivência entre o Estado judeu e um Estado palestino independente.
IRMANDADE MUÇULMANA – O Hamas é um galho da árvore da Irmandade Muçulmana, organização fundamentalista islâmica criada no Egito em 1928 – ou seja, duas décadas antes da fundação de Israel. Sua atuação em Israel/Palestina começou em 1987, durante a primeira Intifada, que foi uma revolta civil e popular contra a ocupação israelense.
Mas – eis o ponto! – o Hamas opunha-se ao método da Intifada original e logo escolheu a via do terror. A escolha refletia uma estratégia: a rejeição do projeto de paz em dois Estados.
Os Acordos de Oslo de 1993, fruto da primeira Intifada, foram imediatamente denunciados pelo Hamas como traição à causa palestina. O motivo encontra-se na Carta fundadora do grupo, que prega uma jihad pela eliminação do Estado judeu.
VISÕES EQUIVOCADAS – O “grupo de libertação” (Erdogan) quer “libertar” os israelenses de seu Estado. A “violência extremada” do 7/10 (professores da USP) deriva de um objetivo extreminista que independe da ocupação israelense.
O Estado de Israel viola os direitos nacionais palestinos e contamina a própria sociedade israelense ao persistir na ocupação ilegal dos territórios palestinos. Tem razão, porém, ao denunciar a imoralidade inscrita nas sentenças que recobrem a barbárie do 7/10 com uma pátina de legitimidade histórica. Guterres converte-se em refém do Hamas ao sugerir que o terror é consequência da ocupação.
Mas são dois os reféns. Netanyahu e seu cortejo de sabotadores da paz são reféns do Hamas desde 2009, quando inauguraram a estratégia de convivência violenta.
DISSE NETANYAHU – “Aqueles que querem frustrar a possibilidade de um Estado Palestino devem apoiar o fortalecimento do Hamas e a transferência de dinheiro para o Hamas. Isto é parte da nossa estratégia”, esclareceu o primeiro-ministro numa conferência do Likud, em 2019.
A chacina do 7/10 provou que o empreendimento fortaleceu militarmente o Hamas. Agora, Israel fortalece politicamente a organização terrorista ao violar reiteradamente as leis de guerra.
O planejamento do Hamas é mais político que militar. Seus líderes apostam num cessar-fogo imposto a Israel pelo clamor internacional que acompanha a crise humanitária em Gaza. Rússia e Irã vocalizam o apelo na arena diplomática. A inclinação do governo de Netanyahu pelo atalho da punição coletiva, que se reflete no bloqueio total imposto ao território, colore a paisagem nos tons mais adequados à estratégia do Hamas. O gesto obtuso de negação de vistos é um prêmio extra concedido ao exército do terror.
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