Pensando bem, do ponto de vista ambiental, talvez não seja uma ideia tão ruim. O problema é decidir onde colocar os outros 214 milhões de brasileiros. Fernando Reinach parda o Estadão:
Apesar de o Congresso Nacional e o Supremo Tribunal Federal (STF)
terem quase se pegado a tapa esta semana, todos concordam que ao
chegarem aqui os portugueses se depararam com uma enorme população
indígena. Nunca saberemos quantos eram ou que áreas ocupavam, mas
representavam 100% da população.
Nos
séculos seguintes grande parte dessa população foi exterminada. Parte
foi simplesmente assassinada, parte escravizada e morta e parte dizimada
pelas doenças que os europeus trouxeram. Hoje, os 1,7 milhão de
indígenas remanescentes representam 0,82% da população brasileira.
Foi para reconhecer o direito dessas populações sobre a terra que ocupavam que as Constituições recentes criaram a figura das reservas indígenas.
São áreas demarcadas e protegidas, em que essas populações podem
preservar seu modo de vida e sua cultura. Nada mais justo frente a toda a
atrocidade cometida.
A
demarcação das reservas indígenas segue um processo complicado, com
muitas etapas, mas fácil de entender. Ele começa quando um grupo
indígena ou a Funai solicita a demarcação. Eles precisam demonstrar que
indígenas habitavam a região e solicitam que a área seja transformada em
reserva.
Num
segundo passo, estudos feitos por arqueólogos e antropólogos precisam
confirmar que existem evidências da ocupação passada ou atual da área
por essas populações. Num terceiro passo é delimitado o perímetro da
área necessária para que a comunidade indígena possa sobreviver e
preservar sua cultura.
Assim,
se a comunidade é caçadora ou nômade, uma área maior é reservada para
sua sobrevivência. Finalmente, a reserva é demarcada e homologada pelo
Presidente da República (Lula homologou oito reservas desde o início do
ano). Como nossa Constituição admite que os direitos das populações
indígenas precedem os direitos individuais dos que chegaram depois,
qualquer propriedade privada localizada no interior de uma nova reserva é
desapropriada e seus ocupantes devem ser realocados.
A
criação de reservas tem ocorrido sem maiores conflitos, pois grande
parte foi criada no interior da região amazônica ou em áreas de
vegetação nativa. Hoje 13,8% do território nacional são terras
indígenas. São 764 reservas, sendo que 448 já foram homologadas.
Essas
reservas são duplamente importantes. Primeiro porque permitem a
sobrevivência das comunidades indígenas, e segundo por constituírem um
enorme conjunto de áreas onde a vegetação nativa e a biodiversidade do
País está protegida e preservada.
As
áreas mais bem preservadas no Brasil estão nessas reservas. A
existência, preservação e expansão das reservas precisam ser defendidas
com unhas e dentes. Caso no futuro distante elas não forem mais
habitadas por populações indígenas, deveriam ser automaticamente
transformadas em reservas ecológicas ou parques intocáveis.
O
problema é que surgiram casos em que as áreas solicitadas pelas
populações indígenas se localizam em áreas já ocupadas com cidades. Para
entender o problema, veja um caso hipotético onde eu resolva recuperar
meus direitos originais.
Os
leitores não sabem, mas minha bisavó era tupi guarani e vivia em São
Paulo. Sua filha, minha avó, vivia numa pequena casa na Alameda
Campinas. Imagine que eu reúna outros tupis guaranis (eles ocupavam o
Pátio do Colégio quando São Paulo foi fundada em 1554 e se estima que
mais de 10 mil ainda vivem na cidade) e juntos solicitemos que uma
reserva indígena seja criada na colina onde está a Avenida Paulista, e
que a reserva se estenda até o Pátio do Colégio e o rio Pinheiros.
Imagine
ainda que nossa alegação seja de que pretendemos retomar nosso modo de
vida no território que era ocupado por nossos ancestrais. Conseguir um
laudo de antropólogos e arqueólogos demonstrando que nossa tribo vivia
na região não deve ser difícil, pois existem cerâmicas e registros
históricos dessa ocupação. Nosso pleito terá de ser avaliado.
Pela
lei atual, e pela interpretação dada pelo Supremo Tribunal Federal ao
que está escrito na Constituição, o governo tem o dever de demarcar essa
área como uma nova reserva indígena. Isso porque os direitos de nossa
tribo vêm de antes da fundação da cidade e só vivemos espalhados no meio
dessa metrópole devido aos colonizadores que tomaram nossas terras.
Como
não existe uma data limite para reivindicar esse direito, ele existe
até hoje e pode ser exercido em qualquer data futura. É fácil entender o
motivo de esse direito causa insegurança jurídica: minha namorada, que
mora aqui perto, vai ficar com medo de que minha tribo tome sua casa.
Afinal, quando uma reserva é homologada, todos os habitantes anteriores
devem ser realocados para fora da reserva.
É
claro que o Executivo e o Judiciário vão arranjar um jeito tortuoso de
não conceder uma grande parte da cidade de São Paulo para minha tribo.
Entretanto, pela Constituição, o correto é que recebêssemos essa terra.
Afinal, não existe dúvida que ela já era nossa antes da chegada dos
portugueses. E esse direito foi reafirmado pelo STF essa semana.
Na
realidade, esse tipo de conflito já existe em duas terras indígenas
aqui perto da avenida Paulista, uma no pico do Jaraguá, outra na região
de Interlagos. Foi um caso semelhante, em Santa Catarina, que provocou a
discussão sobre o “marco temporal”.
A proposta do marco temporal
coloca um limite ao que um grupo indígena pode reivindicar. Pelo
projeto aprovado no Congresso essa semana, eu só posso tomar posse da
Avenida Paulista e adjacências se conseguir demonstrar que ocupava a
área na data da promulgação da Constituição (1988). Esse é o conceito do
marco temporal: não adianta eu provar que minha tribo morava ali quando
a cidade foi fundada, eu preciso mostrar que estava ali em 1988 ou
depois. E que se saiba não existiam aldeias indígenas na Avenida
Paulista em 1988.
Não
há dúvida de que uma lei que defina um marco temporal para a
implantação de novas reservas indígenas restringe o direito dos povos
indígenas. Mas, também é claro que um marco temporal não impede que
novas reservas indígenas sejam criadas para proteger as populações que
habitam as florestas atualmente ou as que estavam em qualquer cidade
depois de 1988, como é o caso das populações indígenas no pico do
Jaraguá ou em Interlagos. E em nada afeta as reservas já demarcadas e
homologadas.
É
claro que é necessário decidir o que fazer com as reservas que estão no
meio do processo de homologação. O principal problema da lei recém
aprovada é que ela contém artigos que enfraquecem a proteção às
reservas. Esses artigos precisam ser vetados.
Me
parece que algum tipo de marco temporal é necessário para garantir a
boa convivência entre as populações indígenas e o restante dos
brasileiros. Como antes da chegada dos portugueses os povos indígenas
ocupavam quase todo o Brasil, a ausência de algum tipo de limite
temporal permite que, em teoria, todo o território brasileiro seja
transformado em reservas indígenas. Pensando bem, do ponto de vista
ambiental, talvez não seja uma ideia tão ruim. O problema é decidir onde
colocar os outros 214 milhões de brasileiros.
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