Fôssemos escrever um manual revolucionário, diríamos que todo militante é estúpido em sua missão reducionista. Luiz Felipe Pondé para a FSP:
Há temas tabus em nossa época. Um deles é dizer que o STF foi um tanto afoito quando
criou as bases para uma guerra civil rural no Brasil com relação ao
"marco temporal". Outro é todo o campo identitário sagrado. Outro é a
emancipação feminina.
Claro,
todos à esquerda. E por quê? Porque na direita você pode jogar pedra
com gosto — é feita de gente lixo— ainda mais depois da anta do
Bolsonaro. A esquerda, não, ela carrega sobre si a aura da graça divina
política. Todos são puros de coração.
Pois
a peça "Espiral", com texto de Ricardo Leitte, direção de Einat Falbel,
no elenco, Julia Carrera, Eliane Sombrio e Falbel, tem a coragem de, ao
revisitar de forma sutil a sombra da famosa Nora da peça "Uma Casa de
Bonecas", do dramaturgo Henrik Ibsen (1828-1906), refletir de forma consistente, e não militante, acerca das consequências da emancipação feminina.
O
que aconteceu com as herdeiras da personagem Nora, que, ao final da
peça "Uma Casa de Bonecas", rompe com o mundo que a fazia de boneca? A
peça estreia no próximo sábado e fica em cartaz até 14 de outubro. As
sessões, aos sábados, acontecem às 19h, no Studio Zoe, na rua Croata
210, na Lapa, com lotação de 20 pessoas.
Ibsen
é visto como "feminista" por criticar a condição feminina no século 19
europeu e simpatizar com a fuga das mulheres daquela condição. Mas a
pergunta é: quais os efeitos colaterais indesejáveis da opção feita por
Nora? Como estão as descendentes da Nora?
Disclaimer
para os inteligentinhos, que hoje dominam completamente o debate
público e jurídico no país: essa reflexão proposta aqui nada tem a ver
com defender um "retorno" a condição préNora —o que seria uma ideia
idiota—, mas sim propor uma reflexão consistente, e não militante, como
faz a peça "Espiral", acerca do "projeto Nora" de Ibsen, vista a partir
dos olhos de hoje.
Toda
militância é estúpida quando se trata de entendermos o mundo. Fôssemos
escrever um novo "manual do revolucionário" hoje, deveríamos acrescentar
um novo pré-requisito: o militante deve ser sempre um estúpido para
cumprir sua missão. Nossa Nora é médica —você conhece profissão mais
chique? Todos os pais e todas as mães sonham com filhos médicos e filhas
médicas.
Mora
num desses condomínios para "singles" descolados. Sozinha, já passada
sua juventude, herda um gato, mora num prédio que tem um assassinato,
policiais rondam, sonha —e teme ao mesmo tempo—com o porteiro a
visitando de surpresa, pois não perdeu o viço da mulher que deseja um
homem que a possua. Perdida, ela bebe vinho demais.
Este é o argumento básico encontrado na peça. Há elementos inspirados no teatro pobre do polonês Jerzy Grotowski (1933-1999).
O espaço é íntimo e minimalista, as atrizes circulam "na sua cara",
estamos claramente num espaço cênico que visa escapar do formato
clássico do teatro burguês em que a segurança é o elemento que sustenta a
condição do espectador na plateia.
A
Nora de "Espiral" não é uma mera sombra da Nora de Ibsen. Ela vai além.
Antes de tudo porque a personagem Nora de Ibsen é um arquétipo da
mulher que se liberta da opressão e vive na adolescência da modernidade,
no século 19, cheia de mitos sobre o alcance benigno que teriam esses
mitos na vida das pessoas.
A
Nora de hoje sabe mais do que a Nora de Ibsen. Ibsen não tinha como
saber de que forma a modernidade "envelheceria". Viveu no século 19, um
século muito orgulhoso de si mesmo. Se olharmos a personagem Nora da
peça "Espiral" sob o prisma do "projeto de vida" da Nora de Ibsen,
seremos obrigados a dizer que a modernidade envelheceu muito mal.
Hoje,
apegada a clichês feministas baratos quando se discute a condição
feminina, a modernidade apenas aprofunda a ignorância acerca de tudo.
Cobre com a manta da cegueira militante toda a vida à sua volta. E os
jovens revolucionários repetem as bobagens que muitos professores e
intelectuais ensinam para eles. Enfim, a peça é rica em elementos
clássicos muito além de Ibsen.
A
Grécia tem um papel de destaque, assim como a caixa de Pandora tem na
vida da personagem Nora. Arriscaria dizer que "Espiral" é a tragédia de
Nora e de algumas mulheres acima dos 50 dos dias de hoje.
Postado há 3 weeks ago por Orlando Tambosi
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