No grande como no pequeno, adultos ou crianças, em comunidade ou individualmente, sejamos insubmissos. Leia-se o livro proibido. Afronte-se o pântano político. Apoie-se quem dá a vida contra a tirania. Eugénia de Vasconcellos para o Observador:
Entre
os escabrosos abusos sexuais contra crianças na igreja católica e
escabrosa indiferença de algum do seu clero; entre a crise da habitação e
o despropositado fait divers do pacote «Mais Habitação», de António
Costa; entre a clareza do discurso de Biden e a alienação do discurso de
Putin quando passa um ano sobre a invasão russa da Ucrânia; a imprensa e
a opinião confluem nos temas, e muito bem. Por isso, escolho não
escrever sobre qualquer um destes assuntos para falar de Liberdade.
Em
Portugal, a editora Presença acaba de pôr em pré-venda The Bluest Eye,
de Toni Morrison, com tradução de Tânia Ganho, O Olhar Mais Azul. Este
livro está, mais uma vez, a ser censurado, do Missouri à Flórida, apesar
de Toni Morrison ser uma voz poderosa, uma belíssima escritora. Ou por
isso mesmo. Os pretextos são obtusos. Não se poder ler, mesmo em tenra
idade escolar, é revoltante. Esteja essa proibição ao serviço da agenda
woke ou da cartilha. A liberdade de ser passa pela liberdade de pensar e
decidir.
A liberdade começa por ser pequena antes de ser maiúscula.
Já
aqui contei: estudei durante a infância e a juventude num colégio
católico feminino com rigor normativo. Quando éramos apanhadas em falta,
se severa, éramos levadas ao gabinete da madre superiora onde, entre o
vermelho do damasco de seda escura dos cortinados e diante da secretária
de pau preto de torcidos e tremidos, nos esperava uma conversa em voz
perigosamente baixa, inevitavelmente concluída com as «consequências das
nossas acções» vertidas em castigo: a manhã de sábado, livre,
convertida em horas extra de estudo, páginas e páginas de infindáveis
exercícios. Se a coisa extrapolasse, chamavam-se os pais, evento
raríssimo.
Neste
colégio podia ler-se A Queda de um Anjo ou O Crime do Padre Amaro ou,
se nos desse na cabeça, o Discurso do Método, na sua macia capa verde e
branca, da Guimarães, uma excepção por encadernar entre volumes sérios
de filetes dourados. Estavam todos disponíveis na biblioteca. Era um
colégio católico. Não era puritano. Em casa, tinha igual liberdade de
leitura, portanto, li sistematicamente todos os livros que sabia terem
sido proibidos em Portugal, no tempo em que a minha mãe tinha a minha
idade, e que haviam chegado às estantes pelas mais equívocas
proveniências.
Revolucionária
anacrónica por via d´Os Capitães da Areia confesso que me deliciava com
a notícia do prémio Lenine na badana da contra-capa dos livros, um dia
contrabandeados, de Jorge Amado, por muito que a então União Soviética
não me inspirasse confiança, graças ao Muro de Berlim, primeiro, e a
John Le Carré depois.
Este
trânsito literário casa-colégio-casa era bom e, no entanto, um dia,
acabou-se. E culpa não foi, a despeito das aparências, nem de D.H.
Lawrence, nem do amante da infame Lady Chatterley, nem da minha mãe que
me havia advertido, «olha que não é para a tua idade…». A culpa não foi
sequer de qualquer uma das irmãs. Foi inteiramente minha: estava a
apanhar uma seca diabólica na aula de revisão para o teste de português e
meti o adversativo Lawrence entre as páginas do grosso caderno espiral.
Distraí-me. Não ouvi a pergunta que a professora me fez. Fui apanhada. E
em flagrante. A professora, laica, uma das poucas que então lá
ensinavam, começa num desatino de moral e bons costumes que acabou
comigo na inquisição, perdão, no gabinete da madre superiora. Em vão
protestei que a subversão do Amante de Connie tinha mais de social do
que de impropriedade, que ele era pobre e ela mulher. A professora,
laica, mas não a cadela enviada para o espaço, rasurava a justificação
insistindo na obscenidade e exigia a presença dos pais. A madre
superiora dizia que talvez a apreensão do livro e a apresentação de um
trabalho extra fossem suficientes. Que não. Que não. E lá veio a minha
mãe com a sua linda juventude, de mini-sport verde escuro listrado a
preto, inteirar-se das graves circunstâncias. Sim, tinha-se oposto à
leitura mas não me proibia a leitura. Não, não achava pernicioso, só
desadequado à idade, mas era inútil proibir porque quando se quer ler,
lê-se nem que seja de lanterna debaixo das mantas, a derreter de calor. E
lá saímos as duas com cartão amarelo. E eu com a proibição materna de
voltar a fazer derivas socio-literárias protestativas diante das forças
do poder. «Calas-te, ouviste?». Ficava-me bem dizer que este delito de
leitura me tinha comprometido com as religiosas do colégio, a madre e as
irmãs. Não é verdade, no entanto. Continuei, fora das aulas, nos
espaços do colégio, a ler o que queria ler. É a existência da norma que
origina a transgressão. Como é a qualidade da norma que define a
qualidade da transgressão. Ambas são necessárias e formativas.
No
grande como no pequeno, adultos como em crianças, em comunidade como
individualmente, sejamos insubmissos. Leia-se o livro proibido. Exija-se
responsabilidade à igreja que a recusa. Confronte-se o pântano
político. Apoie-se quem, em nome próprio e em nosso nome, dá a vida
contra a tirania.
Poucas
coisas falam melhor de liberdade do que a sua privação. O modo como
atravessamos «a noite escura», a das perdas pessoais, prisioneiros da
tristeza; ou as trágicas perdas colectivas, com a quebra dos pactos de
confiança, a vil exploração dos mais frágeis; a usurpação de vidas, a
aniquilação de um povo; oferece-nos o espelho onde nos vemos. Ao que nos
falhar respondamos insubmissos: it
matters not how strait the gate,/ how charged with punishments the
scroll,/ I am the master of my fate,/I am the captain of my soul.
Postado há 2 days ago por Orlando Tambosi
Nenhum comentário:
Postar um comentário