O poder oferece a chance de cada um expandir sua personalidade. Fernando Schüler para a revista Veja:
A
política tem um lado doentio. O episódio da turma “comemorando” a lesão
de Neymar é só mais um exemplo. No passado foi assim com a religião. Na
verdade, muito pior. Lá por volta de 1553, na (hoje) civilizada
Genebra, o grande Miguel Servet, teólogo e homem do mundo, foi queimado
com lenha verde, lentamente, em uma fogueira, apenas por publicar um
livro e discordar de Calvino em certos detalhes teológicos que hoje
acharíamos risíveis. Hoje em dia não colocamos mais ninguém na fogueira
(que eu saiba), e mudamos o foco: brigamos por política, não por
religião. Vibramos quando o jogador que votou no candidato que a gente
não gosta sai mancando. Talvez urrássemos, se ele saísse com a perna
quebrada. Não sei. Vi que Ronaldo Fenômeno fez uma carta se
solidarizando com Neymar e perguntando que país é esse em que alguém não
pode fazer sua escolha política. Uma jornalista respondeu dizendo que
não era nada disso. Perguntava que diabos de direito é esse de votar em
um “monstro”? Reli o texto, para ver se havia entendido bem.
Infelizmente, sim. A lógica era a seguinte: dado que político que eu não
gosto é um “monstro”, quem vota nele é um monstrinho, certo? A partir
daí, consideração zero. E ponto-final.
Poucas
vezes vi um striptease tão bem-feito de nossa alma autoritária. Algo
que está longe de ser um problema deste ou daquele grupo ideológico.
Além da turma descabida estacionada à frente dos quartéis, assistimos,
na mesma semana, àquela agressão patética a uma incrível figura
brasileira que é Gilberto Gil. Houve gritos sobre a “Lei Rouanet”, um
palavrão, coisa não muito diferente do que aconteceu com Rodrigo Maia,
em um resort, com Ciro Gomes, em um aeroporto, e com tantos outros.
Todos se lembram de José de Abreu cuspindo na cara de um casal ou das
agressões sofridas pela jornalista Míriam Leitão, em um voo, anos atrás.
Observar esses casos é doloroso, e mais ainda é a triste seletividade
com que as pessoas encaram isso. Dia seguinte à ofensa dirigida a Gil, o
senador Randolfe Rodrigues protocolou um projeto criminalizando o
“assédio ideológico”. Quando vi aquilo, me veio à mente a cena recente
em que Regina Duarte é hostilizada, chamada de “fascista”, e
virtualmente expulsa de um teatro, também por causa de suas escolhas
políticas. Fiquei em dúvida se o senador acha que todas aquelas pessoas
deveriam ser punidas, ou diria que, naquele caso específico, o lado
certo era o dos assediadores, e que a assediada é que merecia uma
punição.
O fenômeno do ódio está em toda parte. Na campanha, tivemos o assassinato de um apoiador de Lula, por um apoiador de Bolsonaro,
e muita gente quis ver naquilo uma tendência. Semanas depois, aconteceu
o oposto. Houve quem apostasse no “veja, não é bem assim”, e, no geral,
um silêncio constrangedor. Na realidade, há um “efeito Eichmann” no
ódio político. A referência é ao oficial nazista executado em Israel, no
início dos anos 60, e ao espanto de Hannah Arendt quando percebeu que
aquele sujeito, responsável por tantas atrocidades nos campos de
concentração, era um tipo comum. Um burocrata, ocupando um lugar que
milhares de alemães poderiam ter ocupado, e não um “monstro”.
O
mesmo pode ser dito de nosso ódio banal feito de ofensas em aviões,
estádios e calçadas ou nas redes sociais. Daí a pergunta: por que as
pessoas agem assim? Numa resposta rápida: elas agem assim porque elas
podem. Porque a tecnologia lhes deu poder para fazer isso. Uma luz sobre
essas coisas vem do famoso experimento de Philip Zimbardo, em Stanford,
nos anos 70. Há um belo filme (The Experiment) contando essa
experiência. Zimbardo simulou uma prisão, nos porões do departamento de
psicologia, e selecionou voluntários. Uma parte faria o papel de
prisioneiros; outra, de carcereiros. Pouco tempo depois, os carcereiros
estavam agindo com sadismo com seus prisioneiros. Há uma interminável
discussão sobre os méritos da pesquisa, mas uma coisa parece certa: ela
diz respeito à frase famosa de Abraham Lincoln: “Se você quiser testar o
caráter de alguém, lhe dê poder”. O próprio experimento mostrou que as
pessoas agiram de modos diferentes. Alguns foram especialmente sádicos,
outros não. “O poder corrompe”, escreveu o psicólogo americano Scott
Kaufman, “mas não a todos da mesma maneira.” O poder oferece a chance de
cada um expandir sua personalidade. Fazer o seu striptease. É isso com
Gil, com Neymar, com cada post, cada informação que repassamos e a cada
vez que fazemos uso do incrível poder que a tecnologia nos deu, e que
nos permite dizer a todo momento quem nós somos.
Isso
tudo em um ambiente em que agir mal custa muito pouco. A migração do
debate político para a internet nos colocou a todos em um grande
experimento. Um ambiente, como bem explicou a neurocientista inglesa
Susan Greenfield, marcado pela baixa empatia. “Quando ficamos muito
tempo no computador”, escreve ela, “não vemos a pessoa ficar vermelha,
engolir em seco. Quanto mais mergulhamos no ciberespaço, menor a
empatia.” Isso tem a ver com uma antiga intuição de Adam Smith, em sua
Teoria dos Sentimentos Morais: nossa capacidade de sentir empatia se
move em círculos concêntricos. Nos preocupamos primeiro com nós mesmos e
com os mais próximos. Depois com nossos vizinhos, e só muito depois com
os seres humanos em geral. Então temos um problema: ganhamos poder para
afetar a vida de pessoas que não passam de estranhos para cada um de
nós. A pergunta relevante: o que cada um fará com esse poder? Essas
pessoas que gritaram para Gilberto Gil, que berraram nos ouvidos de
Míriam Leitão, que vibraram com a torção de Neymar, que cuspiram, que
puseram o dedo na cara de Regina Duarte tinham todas a chances de fazer
diferente. Exatamente como aqueles voluntários na prisão de mentirinha
do professor Zimbardo. E como naquele experimento, alguns decidiram agir
como sádicos, enquanto outros souberam preservar sua humanidade.
Nesta
semana participei de um ótimo debate, em que tratamos desses impasses
da democracia atual, da sociedade da raiva e tudo o mais, até que alguém
perguntou: “E como vamos sair dessa?”. Na hora, mencionei algumas
reformas institucionais, falei do respeito a direitos, mas depois fiquei
pensando. Reli alguns textos, revistei o experimento de Stanford, e me
dei conta de que há um problema irredutível aí, que reside no coração
humano. O fato simples que a democracia, no redemoinho de uma revolução
tecnológica, não gira mais em torno de meia dúzia de instituições, mas
depende mais e mais do uso que cada um fará com o poder que subitamente
recebeu. Os acontecimentos recentes, quem sabe, podem nos lançar alguma
luz, sobre isso, se estivermos dispostos a aprender.
Fernando Schüler é cientista político e professor do Insper
Publicado em VEJA de 7 de dezembro de 2022, edição nº 2818
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