BLOG ORLANDO TAMBOSI
Os ucranianos dão-nos o mais sensível dos exemplos do que é o amor da liberdade e de algo que antes tínhamos uma notória dificuldade em perceber na sua plena dimensão: o patriotismo. Texto do professor Paulo Tunhas para o Observador:
O
artigo de hoje – exceptuando, é claro, o post scriptum – é um pouco uma
revisitação de alguns dos aspectos que mais me ocuparam o espírito
desde a invasão russa da Ucrânia, e isso logo desde um artigo publicado a 24 de Fevereiro,
dia do início da invasão, mas obviamente escrito ainda a 23. Os tópicos
são organizados de forma contínua a partir do fio condutor da ideia de
má-fé. Eles têm menos a ver com os desenvolvimentos da guerra do que com
a recepção, caseira e não só, dos argumentos dos dois lados. Mais
precisamente, interessou-me, desde o princípio, perceber o tipo de
argumentação daqueles que, de modo diverso mas convergente, exprimiram
simpatia pela posição de Putin e manifestaram desprezo pela de Zelensky e
dos ucranianos.
2022
foi o ano da guerra, uma guerra de conquista, à antiga, em plena
Europa. Houve agressor e um agredido, um invasor e um invadido. O
invasor foi brutal, não hesitando perante nenhuma selvajaria nem nenhum
massacre, tratando o invadido como uma raça inferior que devia, se
necessário, exterminar. O invadido foi heróico, conseguindo resistir a
uma força muito superior e infligindo-lhe, no plano militar, várias
derrotas importantes. De um lado, a barbárie; do outro, o desejo da
civilização. De um lado, a Rússia; do outro, a Ucrânia. De um lado,
Putin; do outro, Zelensky. Isto é o óbvio, aquilo que é manifesto,
patente, tanto à consciência comum como àqueles que têm por obrigação
pensar. Está perante os nossos olhos, salta aos olhos – fura os olhos,
como dizem os franceses.
Esta
evidência merece ser repetida as vezes que for preciso. E são muitas,
porque, ao longo deste ano, ouvimos vozes que militantemente a negam,
que se declaram por ela insatisfeitos. Tecnicamente, esta recusa da
evidência é um traço próprio da má-fé, tal como Sartre a analisou. O
homem da má-fé, com efeito, redefine a verdade como “evidência
não-persuasiva”: “A má-fé captura evidências, mas encontra-se
antecipadamente resignada a não ser preenchida por essas evidências, a
não ser persuadida e transformada em boa-fé”.
É
muito instrutivo ver o processo através do qual a má-fé se manifesta
neste caso concreto, os meios através ela não se deixa persuadir pela
evidência. O primeiro, e o mais decisivo, é a inversão da relação entre
agressor e agredido. Assim, contrariamente às aparências, não foi a
Rússia que agrediu a Ucrânia. Foi a Ucrânia, joguete dos Estados Unidos,
da NATO, do Reino Unido e da União Europeia (ela própria um joguete dos
Estados Unidos), que, provocando a Rússia, a obrigou a reagir,
defensivamente, à provocação ucraniana. É como se se dissesse que fora
Abel a matar Caim e não o inverso. O fundamento desta inversão repousa,
como é bom de ver, naquilo que se poderia chamar o princípio da
causalidade única. Há um único agente verdadeiro neste nosso mundo: os
EUA, que contam com várias correias de transmissão. Tudo o resto é
resistência a essa causalidade única, e esse estatuto garante uma
inocência primordial. Num sentido profundo, Putin não pode ser acusado
de invadir a Ucrânia, a sua atitude foi puramente reactiva.
Isto
predispõe o homem de má-fé, que nega ser persuadido pela evidência, a,
sem paradoxo, aceitar, em maior ou menor escala, a mentira organizada em
sistema do regime autocrático de Putin, que prolonga um velho método da
defunta União Soviética, que por sua vez se enraíza até em tradições
czaristas. O discurso de Putin é todo ele uma teia sistemática de
mentiras, até ao mais ínfimo detalhe. A mentira não é nele um acidente: é
uma essência. Ela pode manifestar-se como uma alucinação do passado com
intenção política, como no célebre artigo de 2021, cujo argumentário é,
nos seus traços gerais, reminiscente do de Hitler para justificar as
suas primeiras conquistas (a questão da língua, etc.). Ou como na
utilização da expressão “operação militar especial” em vez de “guerra”.
Ou de um número infinito de outras maneiras que seria ocioso enumerar. A
atitude vem já dos dias imediatamente prévios à guerra. Um conhecido
colunista do Expresso, por exemplo, poucos dias antes da invasão,
garantia ainda a pés juntos que a Rússia não invadiria a Ucrânia,
definindo a postura de Jens Stoltenberg como o mais execrável
“belicismo”: seria uma espécie de “Dr. Strangelove”. E com que base?
Putin havia declarado taxativamente que não tinha a mais remota intenção
de invadir a Ucrânia. A aceitação inquestionada da mentira – e da
mentira que salta aos olhos, tanto mais que tem uma longa história
precedente – é o complemento natural da recusa da evidência persuasiva. É
um pouco como nas teorias da conspiração: recusa-se radicalmente a
crença partilhada pela comunidade para aceitar ferozmente um mecanismo
explicativo absurdo sem qualquer assento na realidade observável.
Tudo
isto – toda esta actividade ininterrupta da má-fé – é engendrado por um
entusiasmo negativo em relação aos EUA. Mas não convém esquecer um
elemento, por assim dizer, positivo, que é talvez mais poderoso do que o
entusiasmo negativo: o amor fáctico pelo poder nu e brutal, de que
Putin é um magnífico exemplo. Tal amor é uma paixão dominante em vária
gente, da direita à esquerda. Ele releva do desejo de dominação em
estado puro, um facto psíquico que, se formos freudianos, podemos fazer
remontar ao inconsciente e associar a um desejo de omnipotência. E é
afim de um ódio à democracia que habita, por vezes, os mais pacatos
espíritos. Por mim, estou convencido que este aspecto é fundamental. O
desejo de dominação é um facto psicológico bem atestado que não devemos
em situação alguma subvalorizar.
Uma
consequência directa deste amor pelo poder bruto é o desprezo pelo
sofrimento humano, ou, pelo menos, a suspensão das emoções associadas à
compaixão nos nossos corações. De uma certa maneira, é isto o mais
chocante, o que mais vai contra os sentimentos comuns e as intuições
morais justas que fundam a nossa concepção desinflacionada do bem e do
mal. Como não padecer – sem ser pela proclamação de um abstracto e vazio
amor pela paz – com o sofrimento e a derrelição dos ucranianos,
sujeitos à pura barbárie da agressão russa? Há aqui, nesta colossal
falta de empatia, uma miséria humana – não convém nestes casos ser macio
com as palavras – que é o produto do amor pelo poder nu e cru.
Sob
uma forma atenuada, esta paixão deixa-se ainda ver naqueles que se
comportam como os amigos de Job se comportavam. Lembrar-se-ão que estes
recomendavam a Job uma aceitação imitigada das suas provações. Os novos
amigos de Job fazem a mesma coisa aos ucranianos. Mesmo quando não dizem
que, para evitar o sofrimento, não deviam ter resistido à invasão
russa, aconselham-nos a cedências de vária espécie, em nome de uma
espécie de bom-senso espúrio.
Felizmente,
os ucranianos não os ouvem. Eles dão-nos o mais sensível dos exemplos
do que é o amor da liberdade e de algo que antes tínhamos uma notória
dificuldade em perceber na sua plena dimensão: o patriotismo. Como se
sabe, Deus, no fim do livro bíblico, reprova a atitude dos amigos de Job
e manifesta a sua compreensão por este. Esperemos que Deus não tenha
mudado de doutrina. A sobrevivência das nossas democracias está
crucialmente em jogo.
PS.
António Costa escolhe governantes calamitosos sensivelmente com a mesma
frequência com que os oligarcas russos caem de janelas. Mas a sua
roliça pose majestático-kitsch da merecidamente célebre capa da Visão
indica que ele se encontra tão longe de admitir responsabilidade nestas
trapalhadas como Putin de reconhecer publicamente a sua nos fatais voos
dos seus concidadãos. Desta vez a coisa envolveu a TAP, que ele comprou
com o nosso dinheiro por motivos de fervente patriotismo e que se
prepara agora para vender pelos mesmos exactíssimos motivos. Pelo
caminho, e com um igualmente indomável patriotismo, meteu por lá não
menos de 3,2 mil milhões de euros dos contribuintes. Sugiro aos
portugueses que façam uma vaquinha e que fretem o último avião da TAP e
enviem Costa, os seus ministros e os seus secretários de Estado com uma
passagem de ida sem volta para o Yemen, para aí “encerrarem este
capítulo da sua vida profissional”, “abraçando agora novos desafios”. Ou
então que peçam, para o mesmo fim, dinheiro emprestado à ex-secretária
de estado do Tesouro, um mero epifenómeno (mais um) do costumeiro
desmazelo irritado de António Costa: 500.000 euros – um terço do que a
pobre rica senhora queria para sair da TAP – devem chegar. Ou, ainda
melhor, ao próprio Costa. Quem nos arranca 3,2 mil milhões de euros com
tanta facilidade para satisfazer tão volúveis desejos de ter “caravelas
voadoras”, como disse num momento de intenso lirismo (a sua imagética
poética já nos tinha dado as surrealistas “vacas voadoras” oferecidas a
Alexandra Leitão), pode-se bem permitir este pequeno luxo. E, na viagem,
terá tempo para se perguntar: “Quem foi pior? Eu ou ela?”.
Postado há 8 hours ago por Orlando Tambosi
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