Muita gente que, no passado, comprou a bandeira das atletas trans na melhor das intenções acabou percebendo que, na verdade, estava apoiando uma causa injusta. Luciano Trigo para a Gazeta do Povo:
Contava-se
algum tempo atrás, em tom de piada, a história de um prefeito que,
indignado diante do parecer de um engenheiro sobre determinada obra,
impossível de ser realizada devido à lei da gravidade, reagiu baixando
um decreto que revogava a tal lei.
Desconfio
que esse episódio do nosso folclore político foi esquecido porque ele
deixou de ser engraçado: hoje está na moda – e é até considerado bonito –
acreditar que se pode ignorar a realidade, o bom senso e até as leis da
natureza para adequar o mundo aos nossos desejos e caprichos. E ai de
quem disser que não.
Veja
bem, defendo o direito do prefeito de acreditar no que quiser, como
aliás defendo o direito de alguém acreditar em Lula ou no terraplanismo,
mesmo não compartilhando nenhuma dessas crenças. O que não pode é o
prefeito querer impor a sua convicção ao restante da sociedade, levando
adiante uma obra que não pode acabar bem.
Mas
parece que estamos vivendo em uma época na qual convicções particulares
são cotidianamente impostas por decreto ao conjunto da sociedade, com o
silêncio complacente (ou o apoio entusiasmado) da mídia, dos políticos e
até dos intelectuais – a quem caberia, em um mundo normal, chamar as
pessoas à razão.
Isso
também não pode acabar bem, mas tem sido assim em todas as áreas:
integrantes de determinado grupo de interesse minoritário estabelecem
que o círculo é quadrado e, por meio do constrangimento, da ameaça de
sanções sociais e de muita gritaria, exigem que todos levem a sério a
tese esdrúxula – e ficam muito ofendidos quando alguém os contesta.
Ato
contínuo, a nova verdade sobre o círculo se espalha rapidamente nas
redes sociais, e quando você se dá conta já virou lei: quem disser que o
círculo é redondo está sujeito a ser multado, ou coisa pior. Se
reincidir, vai preso por desrespeito à minoria quadratista.
Você acha que estou exagerando? Na Flórida e na Califórnia já tentaram aprovar leis que criminalizam o uso “errado” dos pronomes de tratamento.
A ideia era obrigar as pessoas a usar pronomes correspondentes à
autopercepção de gênero do interlocutor (digo, dx interlocutorx, ou de
interlocutore, sei lá, as regras mudam toda hora). Os projetos de lei
previam multas de milhares de dólares para quem inadvertidamente
chamasse um indivíduo agênero de “ele” em vez de “elu” (ou usasse “dele”
em vez de “delu”).
Algo
assim só é possivel porque hoje, particularmente nas questões
identitárias, o pensamento tem que ser único, a adesão tem que ser
incondicional: quem discordar é sumariamente cancelado. Então, mesmo se
você pertencer a uma minoria, pense duas vezes antes de fazer qualquer
comentário que exija alguma interpretação de texto sobre um assunto
polêmico, ou aguente as consequências.
E
não me venha falar em liberdade de expressão, seu fascista! É assim que
funciona na nova democracia, não te contaram? Você só é livre para
expressar a mesma coisa que todo mundo expressa. Debates só são
autorizados quando todos os participantes expressam a mesma opinião.
Basta
assistir às mesas-redondas sobre política na TV, verdadeiras festas da
democracia, nas quais todos os convidados têm exatamente a mesma opinião
sobre o governo. Debate bom é assim, sem fascista enchendo o saco.
Pois
bem, já escrevi pra caramba e ainda não falei sobre a moça da foto que
ilustra este artigo. É a nadadora Lia Thomas, que até a semana passada
vinha quebrando recorde atrás de recorde nas piscinas, em competições
femininas nos Estados Unidos.
Lia
nasceu homem. Como nadador, foi um atleta medíocre. Depois que decidiu
se identificar como mulher e fazer a chamada transição de gênero, virou
uma atleta de ponta. É claro que isso tem a ver com a estrutura óssea, a
massa muscular e outros fatores decorrentes de ela ter nascido homem, e
não mulher. A biologia importa. Ou não?
“Ah,
mas tem protocolo de medição de testosterona”. Aham, a única diferença
entre um homem e uma mulher é a quantidade de testosterona no corpo.
Alguém acredita sinceramente nisso? Alguém acredita, de coração, que não
é injusto mulheres competirem com atletas que nasceram homens? Você
pode até dizer que sim, em público, para ficar bem na fita, mas acredita
mesmo?
Mas
é isso que vem acontecendo, com o apoio entusiasmado do progressismo
virtuoso, em inúmeras categorias esportivas, inclusive levantamento de
peso, tema tratado neste artigo,
e até, pasmem, no MMA. Já em 2014, o lutador transgênero Fallon Fox
espancou e fraturou o crânio de sua adversária Tamika Brents, uma mulher
– um tipo de fratura que jamais se viu em lutas de MMA entre duas
mulheres nascidas mulheres.
Fallon Fox, lutadora trans. |
Vou me limitar a transcrever as declarações que Tamika e Paul Costa, lutador do UFC, deram logo após o combate:
Tamika
Brents: “Tenho lutado com muitas mulheres e nunca senti a força que
senti numa luta como aquela noite. Não posso responder se é porque ela
nasceu homem ou não, porque eu não sou médico. Só posso dizer que nunca
me senti tão dominada na minha vida e que sou uma mulher anormalmente
forte”.
Paul
Costa: “Ela nasceu um homem, (...) é uma covardia absurda, (...) ela
simplesmente aniquilou as garotas que lutaram contra ela. Elas foram
massacradas, colocaram suas vidas em risco, colocaram sua integridade
física em risco. Eu não quero entrar no aspecto pessoal de sua escolha,
ser transexual ou não, homossexual ou não. O que acontece aqui é que um
homem está lutando contra as meninas, contra as mulheres, como se fosse
uma. Isso é absurdo, e não pode ser aceito”.
Tamika Brents e Paul Costa deveriam ser cancelados e esfolados por transfobia? Ou o que eles disseram faz algum sentido?
Mas Lia Thomas – que, aliás, já se envolveu em uma polêmica com colegas de equipe
por exibir sua genitália masculina no vestiário – não vai mais poder
competir com mulheres que nasceram mulheres. Ontem, depois de anos de
debates (era uma questão muito complexa), a FINA, a entidade que rege a natação mundial, determinou que será criada uma categoria específica, aberta para atletas trans.
Ou
seja, mulher trans competindo com “mulher cis” (mulher-mulher) não vai
rolar mais: atletas trans estão banidas das competições oficiais
femininas. Não vão mais nadar de braçada.
Haverá
reação? Desconfio que será modesta. Muita gente que, no passado,
comprou a bandeira das atletas trans na melhor das intenções acabou
percebendo que, na verdade, estava apoiando uma causa injusta, que
destruía a isonomia nas competições esportivas.
Aliás,
esse padrão se repete em muitas situações fora do esporte: usa-se uma
bandeira legítima (como o combate à desigualdade ou a defesa das
minorias) para cooptar o apoio do cidadão comum, por exemplo, a uma
perseguição – e só lá na frente o cidadão comum percebe que foi usado
como inocente útil em uma agenda política, ou que foi cúmplice de uma
covardia. Mas aí o mal já está feito.
A
decisão da FINA pode representar o começo do fim de um longo período de
hipnose coletiva que começou lá atrás. Lembro, por exemplo, que em 2019
o técnico de vôlei Bernardinho, campeão olímpico e lenda viva do esporte brasileiro, teve que se retratar por
ter reagido de forma espontânea, durante uma partida, ao
vigésimo-oitavo ponto marcado por uma vigorosa atleta trans da equipe
adversária.
Não
foi sequer uma declaração pública, foi uma fala que teve que ser
decifrada por meio de leitura labial. Ainda assim, diante da execração
que se seguiu, Bernardinho teve que pedir desculpas em público.
Desconfio
que hoje o prefeito da piada do início do artigo não seria
ridicularizado: talvez fosse até reeleito. Seu único erro foi estar à
frente do seu tempo, ao afirmar o poder das pessoas de ignorar a
realidade, impor suas opiniões e satisfazer suas vontades pessoais por
decreto.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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