Lovecratf desejava que a ciência nunca nos tirasse a bênção das trevas. Caso a ciência avançasse demais, iríamos rezar pelo retorno da escuridão da Idade Média. Luiz Felipe Pondé para a Gazeta do Povo:
A
literatura de horror também tem seus clássicos. Sem dúvida, um dos
maiores foi o escritor americano H.P. Lovecraft (1890-1937). Um dos
traços da sua grandeza é que seus contos formam um sistema cosmológico e
genealógico, logo, filosófico e teológico.
É
como se, a cada leitura de um dos seus textos, você fosse
reconstituindo, como um investigador desavisado e pouco brilhante –
personagem comum em seus contos –, os elementos do horror cósmico em que
a humanidade, o planeta e o universo estão enraizados.
Na
sua obra, no princípio era o horror. E uma das consequências é que
Lovecraft não tinha muita certeza de que formássemos uma espécie
"humana" única. Somos uma mistura infeliz de deformados vindos de outros
planetas e outras esferas.
Quando
em filosofia se afirma algo como "no princípio era o horror" estamos no
terreno do acosmismo, ou seja, o cosmo não tem uma ordem – e, se tiver,
será uma ordem perversa.
O
que teria a ver um surto tomado como psicótico num sujeito na Nova
Inglaterra – Lovecratf "suspeita" de diagnósticos psiquiátricos – com
surtos de outras pessoas em países e ilhas distantes do Pacífico,
somados a naufrágios misteriosos e achados arqueológicos
incompreensíveis?
Sonhos,
febres, estados catatônicos, cujo conteúdo do imaginário repete, por
sua vez, conteúdos dos acima referidos achados arqueológicos
incompreensíveis que apontam para eras muito mais primitivas do que
podemos imaginar, revelam ser, na verdade, chamados.
Um
chamado à consciência de que um ser ancestral nomeado Cthulhu – O
Chamado de Cthulhu, conto de 1928 –, vindo do universo muito antes da
vida existir na Terra, continua presente, habitando as profundezas dos
oceanos. E que ele poderá retornar à superfície a qualquer momento e
cobrar, como fora comum nos tempos perdidos da pré-história, um culto
com sacrifícios humanos cruéis.
Cthulhu,
segundo uma carta escrita por Lovecraft em 1933 e publicada na edição
crítica de suas obras organizada por Leslie S. Klinger, da editora
Liveright, selo da W.W.Norton & Company, de 2014, é o primeiros dos
seres extraterrestres monstruosos a habitar a Terra desde priscas eras.
Lovecraft, nessa carta, faz uma genealogia do animal alienígena que
atravessa a biologia e a psicologia humanas ancestrais.
Cthulhu
é um exemplo literário de um deus mau, um daqueles espíritos malignos
que, segundo a arqueologia das religiões pré-históricas e antigas,
foram, possivelmente, um dos nossos primeiros objetos de culto –
começamos a adorar espíritos malignos devido à miséria da nossa condição
cósmica.
A
ideia é que esse ser, de vez em quando, desperta alguns humanos – ao
longo de sua obra vamos entendendo um pouco que os humanos não são todos
plenamente humanos – para fazer valer a ameaça de seu retorno ao mundo
"dos vivos".
Noutro
conto, de 1936, A Sombra sobre Innsmouth, Lovecraft narra a maldição
sobre a pequena cidade costeira de mesmo nome, habitada por pessoas
deformadas com traços anfíbios. Ao longo da narrativa, o leitor descobre
a ancestralidade do personagem investigador junto a ele – não vou dar
spoiler aqui do que é essa ancestralidade, mas fica claro o elemento
genealógico maldito entre alguns humanos.
Outro
elemento importante para o sistema filosófico de Lovecraft é o culto
praticado há séculos nessa pequena cidade – a "sombra", em si, do título
–, em que criaturas, tomadas como divinas, pedem sacrifícios humanos em
troca de uma verdadeira barganha com os humanos do local.
Ao
contrário das religiões comuns, como o cristianismo, esse culto, muito
próximo dos cultos narrados como sendo para Cthulhu, de fato entrega o
que promete: se dermos jovens saudáveis em sacrifício, receberemos o que
pedirmos, como luxos, riquezas, peixes para pesca ou luxúria.
Como
o autor deixa claro na abertura de O Chamado de Cthulhu, a verdadeira
misericórdia é nunca sabermos plenamente o que somos. Por isso,
Lovecratf desejava que a ciência nunca nos tirasse a bênção das trevas.
Caso a ciência avançasse demais, iríamos rezar pelo retorno da escuridão
da Idade Média.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
Nenhum comentário:
Postar um comentário