Falta de noção ao receber doação em espécie para filantropia é a última coisa que se esperava de um herdeiro que se prepara há 70 anos para o trono. Vilma Gryzinski:
Quanto
custa um príncipe? Grandes ações filantrópicas podem “comprar” um
membro da família real britânica, que aparece ao lado do doador ou até
vai a suas festas, emprestando o prestígio que só a casa de Windsor tem.
Mas
receber uma mala e até uma sacola de supermercado cheia de dinheiro –
da chiquésima Fortnum & Mason, onde o chá da tarde custa 70 libras,
ou 500 reais – é uma prática associada a políticos corruptos,
traficantes de drogas ou contrabandistas, não ao herdeiro da eternamente
impecável rainha Elizabeth.
Desde
que o Sunday Times revelou que o príncipe Charles recebeu 3 milhões de
euros, em dinheiro vivo, do xeque Hamad bin Jassim bin Jaber Al Thani –
HBJ, para simplificar –, da família real do Catar, até monarquistas
leais se perguntam: onde ele estava com a cabeça?
O
dinheiro foi direto para o Fundo Benemerente, um dos braços da rede de
organizações filantrópicas criadas por Charles. Entre os vários
beneficiados, estão iniciativas para o desenvolvimento sustentável e o
apoio a atividades agrícolas tradicionais, fora um ou outro castelo que o
príncipe renova inteiramente.
Mas é claro que o futuro rei tem que não apenas ser acima de qualquer suspeita, como parecer acima de qualquer suspeita.
E
as doações não aconteceram no vácuo. O emirado árabe, rico em reservas
fósseis e em comportamentos discutíveis, como as suspeitas generalizadas
de que sacolas com muito mais dinheiro trocaram de mãos para garantir
ao micropaís a próxima Copa do Mundo, tornou-se o “dono de Londres”, no
sentido literal.
Com
investimentos de espantosos 42 bilhões de dólares, o Catar tem
propriedades icônicas, como a Harrods e o Shard, o edifício em formato
de caco de vidro, e uma rede de imóveis que hoje ultrapassa os da
rainha.
Um
desses investimentos provocou um atrito com o príncipe em 2009. Os
prédios de apartamentos em estilo moderno atiçaram o conservadorismo
arquitetônico de Charles. Ele chegou a propor um arquiteto de sua
predileção para redesenhar o conjunto, mas não convenceu os xeques.
Não
é impossível imaginar que as doações, feitas entre 2011 e 2015, tiveram
por objetivo aplainar o atrito e cultivar uma relação mutuamente
benéfica: o príncipe entra com o prestígio, os xeques com o dinheiro.
Mas
por que o xeque HBJ, que era primeiro-ministro na época, não fez um
cheque? Talvez a organização que regula os órgãos beneficentes descubra
uma resposta, em sua anunciada investigação, talvez o assunto seja
diplomaticamente engavetado.
Se
não houve vantagem pessoal, não há muito a ser investigado. Mas fica o
dano para a imagem de Charles, que aos 73 anos é o herdeiro que há mais
tempo espera chegar a sua vez. Mas cada vez que sua mãe parece estar
prestes a ceder ao peso da idade – 96 –, ela reaparece, sem nenhum sinal
de que vai abrir caminho ao filho.
Ao
contrário da rainha, que em suas sete décadas de reinado seguiu
criteriosamente o princípio de jamais tomar partido sobre nenhum assunto
em público, Charles é cheio de ideias, em especial em questões
relacionadas ao meio ambiente e ao urbanismo. Seus assessores plantam na
imprensa opiniões que ele quer fazer chegar aos verdadeiros detentores
do poder – os representantes do Parlamento, de onde saem os governantes
eleitos pelo povo.
Um
exemplo recente: o príncipe achou “deplorável” o plano do governo Boris
Johnson de transferir para Ruanda os imigrantes ilegais que chegam
através do Canal da Mancha. Por motivos diferentes, tanto Charles quanto
Boris acabaram fazendo visitas coincidentes ao país africano e se
encontraram para um chá com croissants
O establishment político sabe que ele pretende ser um rei mais participativo e se conforma com isso.
Reis
ou, mais excepcionalmente, rainhas compensam com soft power a falta de
poder real, perdido ao longo dos séculos em que foi sendo construída uma
democracia parlamentarista. Podem – embora não devam – influenciar o
debate e praticar o jus esperneandi nos bastidores.
Além
da posição altamente simbólica que têm entre a população, os
integrantes da família real são os mais valorizados relações públicas do
cenário mundial. Diferentes ministérios estabelecem quais países
interessa ao Reino Unido cultivar, que produtos e projetos pretende
vender, onde o soft power vai funcionar melhor. E lá vão príncipes,
quando não a própria rainha, abrir portas.
Seguindo
este princípio, Charles esteve em três ocasiões no Catar durante o
período em que o dinheiro vivo pingou na conta de sua fundação. Estava
cumprindo uma função de estado. Mas agora paira a sombra de uma dúvida
inconveniente: dá para “comprar” um príncipe, com doações filantrópicas,
até com “Bin Ladens”, o apelido das cédulas de 500 euros que estavam
nas sacolas porque foram muito usadas no financiamento do terrorismo
islâmico.
A
rainha já tem problemas suficientes com o filho Andrew, riscado da
linha de frente por causa do processo por abuso sexual que encerrou com
um pagamento de 15 milhões de dólares, e o neto Harry, que agora vive de
contar segredos familiares. Não precisava ver o herdeiro envolvido num
comportamento tão pouco digno.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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