Terá sido a privacidade um valor efêmero, um privilégio com dois séculos na História da Humanidade? Quais as literacias necessárias para resistir ao domínio da “Sociedade da Informação”? Rodrigo Adão da Fonseca para o Observador:
Ao
longo dos tempos habituámo-nos a gerir a privacidade a uma escala
humana, no quadro daquilo que foram sendo as nossas interações com um
mundo físico, tangível, próprio de um espaço e de um tempo onde os
valores sociais reforçaram o personalismo e uma esfera íntima que as
conquistas das diversas Revoluções Industriais e do progresso
tecnológico tão bem patrocinaram.
É,
pois, quase pacífico afirmar que a privacidade é um direito que se
consolidou como consequência de conquistas civilizacionais e culturais
próprias de mais de dois séculos de progresso industrial e tecnológico
que permitiram melhorias significativas na qualidade de vida de todas as
camadas da população, sendo a sua valorização vista como um dos
expoentes atuais da dignidade humana.
A
mesma tecnologia que disseminou o saneamento básico, que permitiu
acesso a habitação de qualidade ou progressos na medicina (que
possibilitaram a diminuição da mortalidade infantil, a quase erradicação
da subnutrição, a emancipação da mulher ou o aumento da esperança de
vida) – que, em suma, foi a principal aliada na afirmação da Privacidade
enquanto valor central da cultura ocidental moderna e pós-moderna –, é
hoje responsável, – em sentido inverso – pela sua depreciação e, até,
pela sua desvalorização por parte de largas camadas da população.
Para
lá de uma dimensão física e tangível, o progresso tecnológico
empurrou-nos a todos para uma esfera virtual, intangível, onde
permanentemente inscrevemos informações – a que chamamos “dados” –,
expressões de afetos, patrimónios, opiniões, representações da nossa
imagem e personalidade, que se interligam para criar uma
proto-realidade. Esta proto-realidade forma-se a partir de meras sombras
do real, as quais, ainda que desligadas da Pessoa, a moldam, a
relacionam, a condicionam, criando imagens de si que a própria (pessoa)
frequentemente não (re)conhece.
O
ciberespaço representa o triunfo do universo sonhado pelo surrealismo,
um mundo dominado por fragmentos imaginários do mundo real, um espaço
com regras próprias onde habitam monstros e fantasmas, para onde todos
viajamos e para onde todos transferimos sonhos, pesadelos, ansiedades,
opiniões, muitas vezes com projeções freudianas em que nos libertamos do
nosso “Eu Real” para construir “parcelas de Nós” as quais abandonamos
na memória eterna da “Rede”. O ciberespaço guarda estes pedaços do nosso
“Eu desgarrado”, tantas vezes sem contexto, sem continuidade, sem
qualquer corporeidade, sem um “Eu completo” que o explique e lhe dê
sentido, sem uma noção de espaço, tempo ou pertença. Estes “fragmentos
do Eu” ganham a forma de Musas ou Monstros que, perpetuados na memória
digital, frequentemente regressam caprichosamente ao mundo real
convocados por quem domina o Espiritismo Digital.
Durante
milénios a humanidade procurou relacionar-se com o transcendente, com
formas espirituais que se situavam para lá de si, situadas numa dimensão
não tangível. Com o digital, passamos a ter essa relação com um certo
transcendente de uma forma recorrente e frequentemente biunívoca. Como
conviver com este “Além” digital é um dos maiores desafios, não apenas
tecnológico, mas também normativo e cultural. Qual o impacto que o
Planeta Digital tem sobre a construção da nossa personalidade? Seremos
capazes de viver com os nossos fantasmas num ambiente de memória
permanente? A quem pertencem os “fragmentos do Eu” que libertamos ao
longo do tempo no ciberespaço? Que impacto tem a memória digital nas
noções de Passado, Presente e Futuro? E como garantimos num contexto de
condicionamento da memória o exercício da Liberdade?
Terá
sido a privacidade um valor efémero, um privilégio com dois séculos na
História da Humanidade? Teremos perdido a possibilidade de aprender com
os erros na formação da sua personalidade e identidade? Se o
esquecimento é uma característica da memória humana, como será que nos
vamos moldar perante a pré-existência de uma memória permanente e
inter-relacional que se projeta no Infinito? Teremos espaço para afirmar
uma memória digital que esquece, perante um mundo futuro onde tantos
aspiram a sublimar artificialmente o cérebro humano? Qual o papel do
arbítrio perante cérebros artificiais, será o arbítrio “parametrizável”?
Quais os pressupostos futuros da formação da vontade, irá ela
sobreviver como a conhecemos aos condicionamentos do “Big Data”? O que
significa “liberdade” num mundo 4.0? Quais as literacias necessárias
para resistir ao domínio da “Sociedade da Informação”?
Se
até hoje as dimensões real e virtual eram tangibilizadas em separado,
como universos paralelos, com a afirmação de novas tecnologias ancoradas
no 5G e no emergente 6G, e a construção conceptual que suporta o
“metaverso”, os líderes da indústria digital procuram fundir as duas
dimensões numa experiência imersiva onde tudo o que sentíamos até hoje,
“projetado”, passará a ser parte do “mundo real”. O metaverso e todas as
soluções imersivas emergentes são, no fundo, tentativas de fazer da
dimensão virtual, não uma extensão, mas parte da realidade, ampliando as
possibilidades que até hoje sempre sentimos limitadas pela noção de
espaço e tempo. Vemos hoje empresas a comprar e vender terrenos no “metaverso”, mas como se enquadrarão estas transações ao abrigo dos direitos reais? No plano laboral, poderemos ser forçados a trabalhar no metaverso, e em que condições? No plano fiscal, como são tributadas as operações realizadas no metaverso? Como funcionam os crimes contra as pessoas, poderemos ser vítimas de violação quando tal se projete nos nossos avatares? A que jurisdição obedecem todas estas transferências de dados?
Hoje,
há muito mais perguntas e dúvidas do que respostas. Nada que seja
(ainda) grave ou preocupante pois, – sejamos claros – o metaverso é para
já muito mais uma ambição e menos uma realidade com impacto nas nossas
vidas. Mas, como sabemos, as revoluções, num primeiro momento, e de
forma ruidosa, fazem-se nas disrupções da tecnologia, sem grandes
impactos visíveis nas nossas vidas; é com a massificação das
tecnologias, nos momentos posteriores, que elas acabam por
silenciosamente afirmar os seus pressupostos e alterar a cultura e o
nosso modo de vida. Cabe-nos aos que pensamos o impacto da tecnologia
nos comportamentos humanos antecipar e procurar nas leis e nas
literacias os bálsamos para amenizar o seu potencial totalitário.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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