Em artigo publicado pela Folha por ocasião do lançamento da primeira obra de Michael Oakeshott no Brasil - "Sobre a História e Outros Ensaios" -, o historiador Evaldo Cabral de Mello (autor da introdução à edição brasileira) ressalta a importância do pensamento do filósofo britânico:
Michael
Oakeshott e R.G. Collingwood foram os mais expressivos representantes
da filosofia crítica da história na Inglaterra do século 20, ao reatarem
com o pensamento de F.H. Bradley e ao romperem com a tradição
positivista e empiricista que condicionou naquele país a reflexão sobre o
conhecimento do passado. Collingwood [1889-1943] fê-lo originalmente
estimulado pela influência de Vico e de Croce, Oakeshott [1901-1990],
pela dos estudos em Tubingen e em Marbourg, meca dos neokantianos na
Alemanha.
É
de lamentar que, no Brasil, a filosofia crítica da história de língua
inglesa seja escassamente conhecida. Basta dizer que a presente edição
de "Sobre a História e Outros Ensaios" [ed. Topbooks, trad. Renato
Rezende, 304 págs., R$ 38] é a primeira obra de Oakeshott a merecer
tradução brasileira.
Quanto
a Collingwood, só é lido na velha edição de "The Idea of History" [A
Idéia de História], compilada pouco depois de sua morte por T.M. Knox,
que estranhamente não incorporou textos fundamentais que se encontravam
entre os papéis do filósofo e que só recentemente vieram a ser
divulgados. E, contudo, tanto o pensamento de Collingwood quanto o de
Oakeshott, à medida que correspondem de perto à prática historiográfica,
são um corretivo indispensável às tendências que dominaram a filosofia
crítica da história, a filosofia alemã herdeira de Dilthey, Rockert e
Weber, por um lado, e, por outro, a teoria nomológico-dedutiva (Hempel).
Oakeshott
parte da distinção entre o passado prático e o passado histórico, que
se diferenciam pela sua relação com o presente. A existência quotidiana
comporta indefectivelmente referências a muitos passados, a começar pelo
passado encapsulado ao longo da existência do indivíduo e que mantém
com ele uma conexão que independe da rememoração, como na herança
genética.
O
passado também pode ser o passado lembrado, como na memória
involuntária (Proust); e um passado consultado, que pode ser trazido à
tona da consciência mediante um esforço deliberado (psicanálise). Ao
lado desses passados, sobrevivem no presente os vestígios materiais que
encontramos na paisagem, nos museus e nos arquivos, uma ponte romana, um
quadro do século 18, o documento de um acervo, um livro de memórias,
todos aptos a ser estimulados pelo ângulo do prazer contemplativo ou da
sua instrumentalização para fins práticos ou do interesse que possuem
para o conhecimento humano. O passado prático pode ser definido como o
passado do presente-futuro, ou seja, o passado que pode ser manipulado
pelo homem com vista à realização de objetivos vitais. Passado prático e
passado histórico têm em comum o fato de começarem no presente de um
passado registrado ou catalogado nos arquivos e museus.
O
presente do historiador consiste na manipulação regular e profissional
do que ele costuma chamar de fontes. A peculiaridade do entendimento
histórico consiste na preocupação exclusiva com o passado, pois o
entendimento prático só parcialmente se ocupa dele, ao passo que o
entendimento estético nunca o faz. Em termos de ação, o presente está
povoado de uma multidão de objetos encarados como capazes de
satisfazerem as necessidades humanas. O pote que estuda o especialista
da civilização minóica foi originalmente fabricado no propósito de
suprir água a um indivíduo ou a uma família; o relato de uma guerra
civil foi redigido para defender a posição de um dos partidos junto da
autoridade que detinha a última palavra. Em termos de conhecimento
histórico, o presente do historiador se compõe de objetos que,
sobreviventes de épocas anteriores, são "a porta dos fundos", como diz
Oakeshott, que proporciona o único acesso. A investigação histórica tem
início quando, em meio ao passado registrado, o historiador se detém num
objeto não porque o considere belo, sagrado ou um artefato útil, mas
simplesmente porque são os destroços de uma manifestação humana.
Oakeshott
também diferencia "situação" e "evento" históricos, distinção que, em
última análise, se reduz à oposição entre sincronia e diacronia, embora
ele não empregue jamais essas designações. Trata-se da faceta mais
controvertida da sua reflexão. Para Oakeshott, a diacronia, não a
sincronia, é o verdadeiro recurso historiográfico. Mas essa recusa da
diacronia empobreceria fatalmente o conhecimento do passado, pois
equivaleria a expulsar das estantes de história várias das obras-primas
que ali se encontram habitualmente, como "A Civilização do Renascimento
na Itália" [de Burkhardt] ou "O Outono da Idade Média" [de Huizinga].
Para ele, o conhecimento histórico tem a ver unicamente com os "eventos"
históricos e suas concatenações, o que não redunda, porém, em
privilegiar a história política ou em regressar à velha história
factual, pois a história econômica, a social ou a das mentalidades não
são menos abordáveis em termos da diacronia. O estudo do "evento
histórico", por exemplo, da queda do Império e da proclamação da
República, é bem diverso do estudo da "situação" histórica, por exemplo,
o espírito da sociedade colonial, pois se trata de explicar um passado
de diacronias concatenadas. Os eventos relacionam-se intrinsecamente no
tempo, sob a forma de antecedentes e subsequentes, que nada têm a ver
com o binômio causas e consequências da velha historiografia. A
antecedência não constitui por si mesma uma relação significativa,
cabendo ao historiador determinar na série de antecedentes a conexão (ou
a "passagem de eventos", na terminologia de Oakeshott) que esteja
significativamente relacionada ao subsequente. Ora, relacionar eventos
intrinsecamente equivale a descartar as relações externas entre eles,
como são as de "causas", "fins", "acaso", "correlações", "analogias".
A
relação entre eventos históricos não é casual, intencional ou fortuita,
mas contingente, algo que se caracteriza pela contiguidade e pela
circunstancialidade. Oakeshott serve-se de uma metáfora, a do "muro
seco", construído em certas áreas rurais da Inglaterra mediante a
justaposição de pedras, fixadas não por meio da argamassa, mas pelos
respectivos formatos. A relação entre um evento antecedente e um evento
subsequente é de feito circunstancial. Eles não estão ligados pelo
cimento das causas e das leis e não exibem um padrão pré-designado,
motivo pelo qual a tarefa do historiador não consiste em deduzir ou em
induzir, mas em inferir. A passagem de eventos coloca o problema da
mudança, mas a mudança histórica não deve ser entendida no sentido da
combinação da identidade e da diferença, da estabilidade e da mutação,
de vez que o passado histórico se compõe apenas de mudanças, portanto
não havendo "lugar para uma identidade que não seja, ela própria, uma
diferença". Uma "história do Brasil" não é a narrativa das
transformações que no decurso de 500 anos afetaram uma entidade que,
numa parte irredutível de si mesma, permaneceu idêntica, a tão louvada
"identidade nacional". Ela é a narrativa das mudanças dessas mudanças,
ou seja, das mudanças que mudaram anteriores mudanças. Por outro lado, a
mudança histórica não se coaduna com outros gêneros de mutação, como a
teleológica, que encara o passado como um processo predeterminado, mas
que não passa de um exercício profético. A mudança histórica tampouco é
compatível com a mudança orgânica ou com o evolucionismo. Como ocorre à
noção de causa, a idéia de evolução só sobrevive no vocabulário
histórico privada de acepção precisa.
A
argumentação de Oakeshott em favor de dissociar passado prático e
passado histórico leva a resultados decepcionantes, pois o estudo da
história está bem distante de corresponder a tal modelo. Desde sempre, o
conhecimento histórico é o produto de um compromisso entre o passado
prático e o histórico, que coexistem inevitavelmente nos livros de
história, de vez que mesmo as obras que se inspiram em preocupações
estritamente históricas contêm proposições de natureza prática e,
subsidiariamente, de natureza contemplativa ou estética. Trata-se de uma
dificuldade de monta, bem indicativa da precariedade do conhecimento
histórico. O homem viveu sempre imerso no passado prático, não no
histórico. Durante longo tempo, digamos até os séculos 18 e 19, a
humanidade existiu sem se dar conta do passado como algo distinto da sua
instrumentalização pela existência quotidiana, pois a Antiguidade
clássica e o Renascimento viram na história uma lição de coisas ou o
espelho dos príncipes. A visão prática do passado como a grande inimiga
do conhecimento histórico é difícil de derrotar, pois o permeou
duradouramente e continuará a fazê-lo, malgrado a constituição e o
amadurecimento das chamadas ciências históricas.
"Política retrospectiva"
Oakeshott
insurge-se contra a noção vigente de ser o nosso um tempo especialmente
consciente da historicidade, equívoco que decorre da tendência, mais
forte que em qualquer outra época, a relacionar presente e passado, numa
atitude oposta à do historiador, que deveria procurar cindi-los. O
homem atual não está realmente interessado no passado histórico, apenas
em fazer "política retrospectiva" mediante a formulação de julgamentos
que nascem precisamente da intenção de ler o passado de trás para a
frente.
Mas
a argumentação de Oakeshott não consegue dissipar no leitor a dúvida
sobre a viabilidade de extrair inteiramente o passado histórico do magma
do passado prático. Se alguém lograsse realizar o "desideratum"
oakshottiano, o provável é que sua obra se tornasse incompreensível até
para os historiadores não especializados no período.
O
livro de história será sempre uma tradução, melhor ou pior, pois se
destina, por definição, ao leitor de outro tempo; um equilíbrio
precário, uma mistura de passado e presente, embora dosada de diferentes
maneiras, consoante inclusive as predisposições ideológicas e o grau de
competência do historiador. Contudo a impossibilidade de separá-los por
completo não lhe deve servir de álibi para que capitule diante do
passado prático. Seu dever consiste em reduzir a taxa de colesterol
ruim, vale dizer, o quociente de passado prático no passado histórico.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
Nenhum comentário:
Postar um comentário