MEDIÇÃO DE TERRA

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quarta-feira, 29 de junho de 2022

Oakeshott e a filosofia da história

 



Em artigo publicado pela Folha por ocasião do lançamento da primeira obra de Michael Oakeshott no Brasil - "Sobre a História e Outros Ensaios" -, o historiador Evaldo Cabral de Mello (autor da introdução à edição brasileira) ressalta a importância do pensamento do filósofo britânico:


Michael Oakeshott e R.G. Collingwood foram os mais expressivos representantes da filosofia crítica da história na Inglaterra do século 20, ao reatarem com o pensamento de F.H. Bradley e ao romperem com a tradição positivista e empiricista que condicionou naquele país a reflexão sobre o conhecimento do passado. Collingwood [1889-1943] fê-lo originalmente estimulado pela influência de Vico e de Croce, Oakeshott [1901-1990], pela dos estudos em Tubingen e em Marbourg, meca dos neokantianos na Alemanha.

É de lamentar que, no Brasil, a filosofia crítica da história de língua inglesa seja escassamente conhecida. Basta dizer que a presente edição de "Sobre a História e Outros Ensaios" [ed. Topbooks, trad. Renato Rezende, 304 págs., R$ 38] é a primeira obra de Oakeshott a merecer tradução brasileira.

Quanto a Collingwood, só é lido na velha edição de "The Idea of History" [A Idéia de História], compilada pouco depois de sua morte por T.M. Knox, que estranhamente não incorporou textos fundamentais que se encontravam entre os papéis do filósofo e que só recentemente vieram a ser divulgados. E, contudo, tanto o pensamento de Collingwood quanto o de Oakeshott, à medida que correspondem de perto à prática historiográfica, são um corretivo indispensável às tendências que dominaram a filosofia crítica da história, a filosofia alemã herdeira de Dilthey, Rockert e Weber, por um lado, e, por outro, a teoria nomológico-dedutiva (Hempel).

Oakeshott parte da distinção entre o passado prático e o passado histórico, que se diferenciam pela sua relação com o presente. A existência quotidiana comporta indefectivelmente referências a muitos passados, a começar pelo passado encapsulado ao longo da existência do indivíduo e que mantém com ele uma conexão que independe da rememoração, como na herança genética.

O passado também pode ser o passado lembrado, como na memória involuntária (Proust); e um passado consultado, que pode ser trazido à tona da consciência mediante um esforço deliberado (psicanálise). Ao lado desses passados, sobrevivem no presente os vestígios materiais que encontramos na paisagem, nos museus e nos arquivos, uma ponte romana, um quadro do século 18, o documento de um acervo, um livro de memórias, todos aptos a ser estimulados pelo ângulo do prazer contemplativo ou da sua instrumentalização para fins práticos ou do interesse que possuem para o conhecimento humano. O passado prático pode ser definido como o passado do presente-futuro, ou seja, o passado que pode ser manipulado pelo homem com vista à realização de objetivos vitais. Passado prático e passado histórico têm em comum o fato de começarem no presente de um passado registrado ou catalogado nos arquivos e museus. 

O presente do historiador consiste na manipulação regular e profissional do que ele costuma chamar de fontes. A peculiaridade do entendimento histórico consiste na preocupação exclusiva com o passado, pois o entendimento prático só parcialmente se ocupa dele, ao passo que o entendimento estético nunca o faz. Em termos de ação, o presente está povoado de uma multidão de objetos encarados como capazes de satisfazerem as necessidades humanas. O pote que estuda o especialista da civilização minóica foi originalmente fabricado no propósito de suprir água a um indivíduo ou a uma família; o relato de uma guerra civil foi redigido para defender a posição de um dos partidos junto da autoridade que detinha a última palavra. Em termos de conhecimento histórico, o presente do historiador se compõe de objetos que, sobreviventes de épocas anteriores, são "a porta dos fundos", como diz Oakeshott, que proporciona o único acesso. A investigação histórica tem início quando, em meio ao passado registrado, o historiador se detém num objeto não porque o considere belo, sagrado ou um artefato útil, mas simplesmente porque são os destroços de uma manifestação humana.


Faceta controvertida

Oakeshott também diferencia "situação" e "evento" históricos, distinção que, em última análise, se reduz à oposição entre sincronia e diacronia, embora ele não empregue jamais essas designações. Trata-se da faceta mais controvertida da sua reflexão. Para Oakeshott, a diacronia, não a sincronia, é o verdadeiro recurso historiográfico. Mas essa recusa da diacronia empobreceria fatalmente o conhecimento do passado, pois equivaleria a expulsar das estantes de história várias das obras-primas que ali se encontram habitualmente, como "A Civilização do Renascimento na Itália" [de Burkhardt] ou "O Outono da Idade Média" [de Huizinga]. Para ele, o conhecimento histórico tem a ver unicamente com os "eventos" históricos e suas concatenações, o que não redunda, porém, em privilegiar a história política ou em regressar à velha história factual, pois a história econômica, a social ou a das mentalidades não são menos abordáveis em termos da diacronia. O estudo do "evento histórico", por exemplo, da queda do Império e da proclamação da República, é bem diverso do estudo da "situação" histórica, por exemplo, o espírito da sociedade colonial, pois se trata de explicar um passado de diacronias concatenadas. Os eventos relacionam-se intrinsecamente no tempo, sob a forma de antecedentes e subsequentes, que nada têm a ver com o binômio causas e consequências da velha historiografia. A antecedência não constitui por si mesma uma relação significativa, cabendo ao historiador determinar na série de antecedentes a conexão (ou a "passagem de eventos", na terminologia de Oakeshott) que esteja significativamente relacionada ao subsequente. Ora, relacionar eventos intrinsecamente equivale a descartar as relações externas entre eles, como são as de "causas", "fins", "acaso", "correlações", "analogias". 

A relação entre eventos históricos não é casual, intencional ou fortuita, mas contingente, algo que se caracteriza pela contiguidade e pela circunstancialidade. Oakeshott serve-se de uma metáfora, a do "muro seco", construído em certas áreas rurais da Inglaterra mediante a justaposição de pedras, fixadas não por meio da argamassa, mas pelos respectivos formatos. A relação entre um evento antecedente e um evento subsequente é de feito circunstancial. Eles não estão ligados pelo cimento das causas e das leis e não exibem um padrão pré-designado, motivo pelo qual a tarefa do historiador não consiste em deduzir ou em induzir, mas em inferir. A passagem de eventos coloca o problema da mudança, mas a mudança histórica não deve ser entendida no sentido da combinação da identidade e da diferença, da estabilidade e da mutação, de vez que o passado histórico se compõe apenas de mudanças, portanto não havendo "lugar para uma identidade que não seja, ela própria, uma diferença". Uma "história do Brasil" não é a narrativa das transformações que no decurso de 500 anos afetaram uma entidade que, numa parte irredutível de si mesma, permaneceu idêntica, a tão louvada "identidade nacional". Ela é a narrativa das mudanças dessas mudanças, ou seja, das mudanças que mudaram anteriores mudanças. Por outro lado, a mudança histórica não se coaduna com outros gêneros de mutação, como a teleológica, que encara o passado como um processo predeterminado, mas que não passa de um exercício profético. A mudança histórica tampouco é compatível com a mudança orgânica ou com o evolucionismo. Como ocorre à noção de causa, a idéia de evolução só sobrevive no vocabulário histórico privada de acepção precisa. 

A argumentação de Oakeshott em favor de dissociar passado prático e passado histórico leva a resultados decepcionantes, pois o estudo da história está bem distante de corresponder a tal modelo. Desde sempre, o conhecimento histórico é o produto de um compromisso entre o passado prático e o histórico, que coexistem inevitavelmente nos livros de história, de vez que mesmo as obras que se inspiram em preocupações estritamente históricas contêm proposições de natureza prática e, subsidiariamente, de natureza contemplativa ou estética. Trata-se de uma dificuldade de monta, bem indicativa da precariedade do conhecimento histórico. O homem viveu sempre imerso no passado prático, não no histórico. Durante longo tempo, digamos até os séculos 18 e 19, a humanidade existiu sem se dar conta do passado como algo distinto da sua instrumentalização pela existência quotidiana, pois a Antiguidade clássica e o Renascimento viram na história uma lição de coisas ou o espelho dos príncipes. A visão prática do passado como a grande inimiga do conhecimento histórico é difícil de derrotar, pois o permeou duradouramente e continuará a fazê-lo, malgrado a constituição e o amadurecimento das chamadas ciências históricas.

"Política retrospectiva"

Oakeshott insurge-se contra a noção vigente de ser o nosso um tempo especialmente consciente da historicidade, equívoco que decorre da tendência, mais forte que em qualquer outra época, a relacionar presente e passado, numa atitude oposta à do historiador, que deveria procurar cindi-los. O homem atual não está realmente interessado no passado histórico, apenas em fazer "política retrospectiva" mediante a formulação de julgamentos que nascem precisamente da intenção de ler o passado de trás para a frente.

Mas a argumentação de Oakeshott não consegue dissipar no leitor a dúvida sobre a viabilidade de extrair inteiramente o passado histórico do magma do passado prático. Se alguém lograsse realizar o "desideratum" oakshottiano, o provável é que sua obra se tornasse incompreensível até para os historiadores não especializados no período.

O livro de história será sempre uma tradução, melhor ou pior, pois se destina, por definição, ao leitor de outro tempo; um equilíbrio precário, uma mistura de passado e presente, embora dosada de diferentes maneiras, consoante inclusive as predisposições ideológicas e o grau de competência do historiador. Contudo a impossibilidade de separá-los por completo não lhe deve servir de álibi para que capitule diante do passado prático. Seu dever consiste em reduzir a taxa de colesterol ruim, vale dizer, o quociente de passado prático no passado histórico.
 
BLOG  ORLANDO  TAMBOSI

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