Bondade que corrompe leitores demasiadamente generosos é explicada pela ignorância de quem não sabe 'discriminar'. João Pereira Coutinho para a Folha de São Paulo:
1) Puxo pela cabeça. Desisto. Não me lembro da última vez que li uma crítica literária severa. Em Portugal e no Brasil, essas raridades já não se encontram nos jornais: tudo é genial, ou quase genial.
Na imprensa francesa, inglesa ou americana, há mais variedade; e, de vez em quando, alguém ainda usa o machado.
Mas
os gênios, e não os medíocres, são a maioria, o que não deixa de ser
uma contradição com aquilo que sabemos ou intuímos sobre a genialidade
(e a mediocridade). Não deveria ser ao contrário? Uma abundância de
medíocres e uma escassez de verdadeiros talentos?
Não é um exclusivo dos livros. Tempos atrás, Lloyd Evans, o crítico de teatro da Spectator, indignava-se justamente por já não haver vaias no teatro.
Durante toda a sua história, desde a Grécia Antiga, o público sempre
castigou as más peças ou os maus atores com assobios e outras
sonoridades.
Hoje,
qualquer peça e representação são recebidas com aplausos festivos. E,
quando isso não acontece, é por razões extrateatrais. Um exemplo recente
oferecido pelo crítico: no musical "Cinderela", de Andrew Lloyd Webber, o público protestou. Não pela qualidade da obra, o que seria natural (duplamente natural, aliás, se tratando de Lloyd Webber).
A
causa da indignação foi uma carta do próprio criador, lida na última
noite, em que Lloyd Webber se referia a "Cinderela" como "um erro
dispendioso".
Eis o estado a que se chegou: nem ao autor é permitido um gesto de autocrítica. Como explicar esse clima enjoativo de elogios?
Cabeças otimistas dirão que as letras e as artes nunca estiveram tão bem, com dezenas de obras-primas todas as semanas.
Cabeças
humanistas dirão que as críticas implacáveis fazem parte de um passado
primitivo, em que o gosto de ver sangue era maior do que a vontade de
informar ou ilustrar.
Eu prefiro as cabeças realistas, para quem a generosidade crítica se explica pela ignorância de quem não sabe "discriminar".
Eu sei, eu sei: discriminar é palavra feia. Na linguagem comum, significa usar do preconceito para tratar mal quem não merece esse tratamento.
Acontece que a discriminação, entendida como capacidade de separar a excelência da mediania e do lixo, é um processo vital para qualquer cultura que se preze.
Por
mais simpáticas que sejam as críticas simpáticas, os leitores e os
autores precisam de críticas antipáticas. Nem que seja para confrontar
as suas certezas e confortos com um banho de exigência.
Como leitor, meu gosto foi depurado por alguns carrascos estimáveis: H.L. Mencken (arrasou H.G. Wells, mas soube defender Scott Fitzgerald), Gore Vidal (que sempre esteve certo sobre as vulgaridades de Norman Mailer) ou Christopher Hitchens (que fez Gore Vidal provar do seu veneno).
E,
como autor, agradeço todas as tareias honestas de quem soube furar, com
conhecimento de causa, as minhas derivas autocomplacentes. Não digo
nomes, até porque tenciono vingar-me um dia com a mesma honestidade, mas
eles nem imaginam como afinaram a minha pena.
A
bondade crítica que corrompe leitores e autores é a expressão máxima da
decadência cultural: uma forma preguiçosa de multiplicar gênios pela
incapacidade de reconhecer um talento que seja.
2)
Semanas atrás, o mundo foi confrontado com dois crimes numa escola de
Uvalde, no Texas. Estranhamente, só o primeiro crime parece ter ocupado a
atenção dos comentadores.
Esse primeiro crime é o mais óbvio: um psicopata de 18 anos entrou no colégio e assassinou 19 crianças e dois adultos. A maioria dos comentários criticou, e bem, a facilidade com que se compram armas de assalto nos Estados Unidos.
Mas
existiu um segundo crime: a covardia da polícia em socorrer de imediato
as crianças, que telefonavam em desespero para o 911 ao verem os seus
colegas serem abatidos.
Sabemos
agora, pelo chefe do Departamento de Segurança Pública do Texas, que
apesar de estarem bem armados e com o equipamento de proteção adequado,
os policiais demoraram 1 hora e 14 minutos para abrir a porta que dava
acesso à câmera de horrores. A porta, ainda por cima, nem sequer estava
trancada.
Tradução: Salvador Ramos, o criminoso, teve tempo de sobra para matar à vontade.
Bem
sei que, segundo o espírito do tempo, não é de bom tom exigir alguma
dureza policial. É mais confortável clamar pela abolição da polícia, ou
pelo menos pela asfixia financeira dos seus serviços.
O resultado é esse aí.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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