Afirma-se a visão de que o Brasil é incapaz de controlar o seu território, pondo em perigo, por questões ambientais, a própria humanidade. Artigo do professor Denis Rosenfield para o Estadão:
O
assassinato de um indigenista e de um jornalista no Vale do Javari, nas
condições mais indignas e cruéis, mostra uma faceta cada vez mais
visível do Estado brasileiro: sua ausência em várias fatias do
território nacional. São as favelas, cujos símbolos são as cariocas,
dominadas pelo narcotráfico e pelas milícias; são as zonas rurais, em
particular indígenas e ambientais de conservação, nas quais reinam a
desordem pública, a violência e o desprezo pela condição humana. Um
Estado que perde controle de seu território termina por abdicar de sua
soberania.
Os
assassinatos expuseram uma terra sem lei, um faroeste amazônico, no
qual esparsas forças de policiamento são incapazes de agir. Se o Estado
deixa de cumprir com suas funções básicas, alguma outra “entidade” vem a
ocupar o seu lugar. Não existe espaço vazio, na medida em que as
pessoas lá continuam a viver e a sobreviver, assim como os mais
diferentes interesses particulares, lícitos e ilícitos. Em particular,
onde o Estado se ausenta, o crime e a violência preenchem o seu espaço.
Note-se
que, no caso em questão, se trata de uma terra indígena já demarcada,
onde, em princípio, não deveriam existir disputas por território.
Legalmente, o problema estaria resolvido, mas ele vai muito além, pois
põe em pauta a existência ou não do Estado nessas regiões. De nada
adiantam decisões judiciais, se não há forças policiais e, se for o
caso, militares para implementá-las. Num país “mal” habituado pelo
ativismo jurídico, onde juízes, desembargadores e ministros emitem
opiniões, frequentemente à revelia da Constituição, embora amparados em
“interpretações”, a dura realidade se impõe.
O
território indígena em pauta, de extensão comparável a um Estado médio
brasileiro, não é um santuário imune a invasores. O sonho e a decisão
judicial nada podem quando outros grupos sociais se impõem pela força.
Não se trata de uma disputa entre indígenas e agricultores que se
combateriam pelas mesmas terras, mas de um enfrentamento entres
diferentes atores que agem à margem da lei. E o fazem porque não há
Estado. No mapa, o desenho geográfico é harmônico, na realidade essas
demarcações se apagam.
Na
região, dentro e fora dos territórios indígenas, grupos de
narcotraficantes vêm agindo impunemente. São grandes cartéis
internacionais e várias organizações criminosas nacionais, que viram na
ausência de Estado uma oportunidade de ouro para o desenvolvimento de
seus negócios. Uma vez que estamos diante de uma zona fronteiriça, tendo
limites com Peru e Colômbia, a internacionalização do tráfico de drogas
é, em muito, favorecida. Observe-se que se trata de uma questão tanto
de soberania interna quanto externa. Acrescentem-se, ademais, o garimpo,
a pesca e a caça ilegais, que terminam proliferando pela ausência de
políticas sociais para a região. Uma pesca de manejo, por exemplo,
poderia ser a solução, se o Estado estivesse ali presente.
O
motivo do crime foi fútil, pois, segundo as informações, os assassinos
teriam agido por terem sido descobertos no exercício da pesca ilegal.
Numa terra sem Estado, a violência toma o lugar da solução pacífica de
conflitos. As fotos dos criminosos mostram que são maltrapilhos,
pertencentes a comunidades ribeirinhas, elas mesmas produtos da
miscigenação racial, e vivendo como podem no maior desamparo. Um dos
criminosos, denominado “Pelado”, deve estar igualmente pelado de tudo,
inclusive de condições dignas de vida. O outro, “dos Santos”, apesar do
apelido, não deve veicular nenhuma santidade, estranho aos mais básicos
mandamentos religiosos e humanos.
O
crime ganhou grande repercussão internacional, causando enorme dano à
reputação do País. Externamente, aparece como um Estado pária, avesso à
conservação ambiental e à proteção de seus povos nativos e, também, de
suas populações ribeirinhas, que vivem nas margens dos rios e nos
limites dos territórios indígenas. Ou seja, afirma-se a visão de que o
Brasil é incapaz de controlar o seu território, pondo em perigo, por
questões ambientais, a própria humanidade. Por mais equivocada que possa
ser essa visão, ela se torna a percepção mesma da opinião pública
internacional, vindo a influenciar diretamente os líderes políticos dos
países mais importantes. Vale a percepção que eles adquirem, e a nossa
só tem piorado nos últimos anos, graças às diatribes e às
irresponsabilidades do atual presidente. Ao agir dessa forma, ele joga
contra a soberania nacional que diz defender.
Urge
que o Estado brasileiro se reaproprie de seu território, faça valer
suas leis, seja na imensidão amazônica, seja nas favelas. Que utilize
forças policiais e militares, coordenadamente, sem rivalidades
corporativas e sem justificativas “financeiras”. Se não o fizer, outros
serão tentados a fazê-lo, podendo ser o narcotráfico ou forças de outros
países, impondo, inclusive, sanções financeiras ou de exportação de
nossos produtos. A questão, aqui, se chama soberania nacional.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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