O presidente russo usa seu poderoso arsenal nuclear para subverter a ordem atômica internacional. Reportagem da The Economist, com tradução para o Estadão:
Há
quase 120 dias, Vladimir Putin lançou sua invasão à Ucrânia alertando
para a possibilidade de um ataque nuclear. Após exaltar o arsenal
atômico da Rússia e prometer subjugar a Ucrânia, ele ameaçou países que
se sentissem tentados a interferir com consequências “que vocês jamais
viram em toda sua história”. Desde então, a TV russa passou a atormentar
seus espectadores com conversas de armagedon.
Mesmo
que Putin jamais use a bomba na Ucrânia, ele já abalou a ordem nuclear.
Depois de suas ameaças, a Otan limitou o apoio que estava preparada
para oferecer, com duas implicações ainda mais preocupantes por terem
sido afundadas pelos tambores da campanha de guerra convencional da
Rússia. Uma delas foi que Estados vulneráveis que veem a guerra através
do olhar da Ucrânia sentirão que a melhor defesa contra um agressor com
armas nucleares é ter o próprio armamento atômico. A outra é que outros
Estados com armas nucleares acreditarão que são capazes de se beneficiar
copiando as táticas de Putin. Se isso ocorrer, algum país certamente
concretizará sua ameaça em algum lugar. Este não pode ser o legado
devastador desta guerra.
A
ameaça nuclear já vinha crescendo antes da invasão. A mistura de
normas, tratados, garantias mútuas, lisonjas, persuasão, mecanismos
técnicos, medo e tabu que impediu o mundo de ver armas nucleares usadas
contra exércitos ou cidades desde 1945 parecia bastante irregular mesmo
antes de Vladimir Putin, presidente da Rússia, alertar, no dia 24 de
fevereiro, que quem atravessasse o caminho da Rússia arriscaria
“consequências… como vocês nunca viram em toda a sua história”.
A
simulação aconteceu no enclave de Kaliningrado, em meio à guerra na
Ucrânia, e aumenta o temor sobre o uso de armas nucleares no conflito.
Em
termos de controle de armas, quase todos os pactos entre os Estados
Unidos e a Rússia caducaram. Moscou estava desenvolvendo novas armas,
como o Poseidon, não cobertas pelos acordos que permanecem. O arsenal
nuclear da China está se expandindo rapidamente. Quanto a impedir a
disseminação das armas, décadas de pressão internacional não conseguiram
impedir que a Coreia do Norte adquirisse armas nucleares e aumentasse
sua sofisticação e a gama de alvos contra os quais poderiam ser usadas.
O
único acordo de não proliferação notável feito na última década, no
qual o Irã limitou seu programa nuclear em troca de alívio de sanções,
estava por um fio, com a república islâmica mais perto de uma bomba do
que nunca. Agora está ainda mais perto. E a falta de progresso em
direção ao desarmamento por parte de EUA, Reino Unido, China, França e
Rússia, os Estados com armas nucleares que fazem parte do Tratado de Não
Proliferação Nuclear (NPT), continuava a erodir a legitimidade do
regime que o tratado estabeleceu.
China, Coreia do Norte têm expandido e melhorado seus arsenais nucleares
A
Coreia do Norte possui dezenas de ogivas. O Irã, afirmou a ONU esta
semana, conseguiu suficiente urânio enriquecido para fabricar sua
primeira bomba. Apesar do pacto Novo Start limitar mísseis balísticos
intercontinentais da Rússia e dos EUA até 2026, o acordo não cobre armas
como torpedos atômicos. O Paquistão está aumentando rapidamente seu
arsenal. A China está modernizando suas forças nucleares e, afirma o
Pentágono, as expandindo.
Toda
essa proliferação reflete o enfraquecimento da repulsa moral que
restringe o uso de armas atômicas. À medida que as memórias de Hiroshima
e Nagasaki desvanecem, as pessoas deixam de entender como a detonação
de uma pequena bomba em campo de batalha, do tipo que Putin poderia
acionar, é capaz de desencadear a escalada para a aniquilação mútua de
cidades inteiras. EUA e União Soviética conviveram com a possibilidade
de um impasse nuclear de apenas dois lados. Há um alarde insuficiente
diante da perspectiva de várias potências nucleares com dificuldades
para manter a paz.
A
invasão da Ucrânia colabora para esse mal-estar. Mesmo se Putin estiver
blefando, suas ameaças corroem garantias de seguranças concedidas a
Estados não nucleares. Em 1994, a Ucrânia entregou as armas atômicas
soviéticas que mantinha em seu território em troca de compromissos de
Rússia, EUA e Reino Unido de que não seria atacada. Ao tomar a Crimeia e
apoiar separatistas nas regiões do Donbas em 2014, a Rússia quebrou de
maneira flagrante essa promessa. Os americanos e os britânicos, que
praticamente não fizeram nada, também quebraram suas promessas.
Isso dá uma razão extra para Estados vulneráveis adquirirem armas atômicas. O Irã pode considerar que renunciar à bomba não lhe valeria nenhum benefício duradouro e ter a bomba neste momento não lhe causaria tantos problemas quanto no passado. Se o Irã testar uma bomba, como Arábia Saudita e Turquia responderiam? Coreia do Sul e Japão, que detêm conhecimento para se armar independentemente, colocarão menos fé nos compromissos do Ocidente em protegê-los em um mundo mais perigoso.
A
estratégia de Putin de sinalizar com ameaças atômicas é ainda mais
corrosiva. Nas décadas seguintes à 2.ª Guerra, as potências nucleares
consideraram acionar armas atômicas em batalha. Mas nas últimas cinco
décadas, tais alertas foram apenas para países que, como o Iraque e a
Coreia do Norte, ameaçavam usar armas de destruição em massa. Putin é
diferente, pois invoca ameaças atômicas para ajudar suas forças
invasoras a vencer uma guerra convencional.
E
elas parecem ter funcionado. É verdade que o apoio da Otan à Ucrânia
tem sido mais robusto do que o esperado. Mas a aliança tem hesitado em
enviar armamentos “ofensivos”, como aeronaves. Apesar de o presidente
dos EUA, Joe Biden, ter enviado vastas quantidades de armas, na semana
passada ele se opôs a fornecer mísseis capazes de atingir alvos dento da
Rússia. Outros na Otan parecem pensar que a Ucrânia deveria estabelecer
um acordo com a Rússia, porque infligir uma derrota sobre Putin poderia
colocá-lo contra as cordas, com consequências nefastas.
Dano causado pelo presidente russo é de difícil reparação
Essa
lógica estabelece um precedente perigoso. A China poderia impor
condições similares caso ataque Taiwan, argumentando que a ilha já é
parte do território chinês. Mais Estados poderão concentrar mais
armamentos de batalha, o que desdenharia do Tratado de Não Proliferação
de Armas Nucleares, sob o qual eles estão sujeitos a trabalhar pelo
desarmamento.
O
dano causado por Putin será difícil de reparar. O Tratado sobre a
Proibição de Armas Nucleares, que entrou em vigor no ano passado e foi
firmado por 86 países, pede sua abolição. Mas países armados temem ficar
mais vulneráveis, mesmo que o desarmamento coletivo possa fazer
sentido.
É
importante perseguir controles de armamentos com verificação
escrupulosa. A Rússia pode ser relutante, mas está empobrecida. Bombas
nucleares custam caro, e o país precisa reconstruir suas forças
convencionais. Os EUA poderiam aposentar seus mísseis terrestres sem
comprometer sua segurança, em troca de cortes da Rússia. Ambos os lados
podem concordar sobre especificidades técnicas, como não atacar o
comando nuclear, controles e infraestrutura de comunicações em um
conflito convencional. Em última instância, o objetivo deveria ser
atrair a China.
Essas
negociações serão mais fáceis se a tática nuclear de Putin fracassar –
ele poderá começar garantindo que não atacará a Ucrânia. Biden escreveu
na semana passada que os EUA não detectaram preparativos. Mas países
como China, Índia, Israel e Turquia, com acesso ao Kremlin, deveriam
alertar Putin a respeito de sua fúria caso, Deus nos livre, ele
realmente vier a usar uma arma nuclear.
Poupar
a Ucrânia de um ataque nuclear é essencial, mas não basta. O mundo deve
garantir que Putin não prospere com sua atual agressão como prosperou
em 2014. Se Putin acreditar mais uma vez que suas táticas funcionaram,
ele fará mais ameaças nucleares no futuro. Se ele também concluir que a
Otan pode ser intimidada, convencê-lo a recuar será mais difícil. Outros
aprenderão com seu exemplo. A Ucrânia, portanto, precisa de armas mais
avançadas, mais ajuda econômica e mais sanções sobre a Rússia para fazer
o Exército de Putin bater em retirada.
Países
que consideram esta guerra apenas um combate europeu passageiro
negligenciam a própria segurança. E não poderiam estar mais errados
aqueles argumentando em nome da paz, afirmando que a Ucrânia precisa
alcançar uma trégua com a Rússia neste exato momento para não acabar
atolada numa guerra que é incapaz de vencer, contra um inimigo que já
perdeu o ferrão. Se Putin pensar que a Otan perdeu sua determinação, a
Rússia poderá continuar perigosa. E se Putin for convencido de que suas
ameaças nucleares representam a diferença entre a derrota e qualquer
resultado que preserve sua reputação, a Rússia poderia ficar ainda mais
perigosa.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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