O pensamento do filósofo britânico Roger Scruton, falecido em janeiro de 2020, tem raízes em Rousseau, mas, depois do Maio de 68, ele se descobriu no outro lado das trincheiras. Texto de João Pereira Coutinho, publicado, por ocasião da morte do pensador, pela Folha de São Paulo:
1.
O escritor Thomas Carlyle
escreveu um dia que a segunda edição do “Contrato Social” de
Jean-Jacques Rousseau (1712-1788) foi encadernada com a pele daqueles
que se riram da primeira edição. Frase brutal para uma realidade brutal:
Rousseau foi o grande precursor da mentalidade revolucionária moderna.
Quem não entendeu isso acabou devorado pelos herdeiros espirituais do
genebrino.
Roger
Scruton entendeu isso e nunca riu de Rousseau. Aliás, se fosse possível
fazer uma súmula do pensamento político do filósofo inglês (não é),
poderíamos afirmar que as dezenas de livros publicados por Scruton tomam
Rousseau, explícita ou implicitamente, como ponto de partida.
Irresistível:
o grande propósito da obra de Rousseau foi o de mostrar como a
civilização degradou a liberdade natural dos homens. Se nascemos livres e
estamos aprisionados em toda parte (a famosa proclamação
rousseauniana), isso deve-se à constituição da sociedade civil e a todos os artifícios por ela inventados.
As artes e as ciências degradaram a moral e o caráter dos homens. E a propriedade privada,
que nasceu da soberba de alguns em se apropriarem de um mundo que a
todos pertencia, foi o grande estímulo para a exploração, a duplicidade e
a violência que vemos ao redor.
Confrontado
com esse cenário, Rousseau não advogou um retorno ao passado distante, a
esse “estado da natureza” em que a paz e a concórdia reinavam. O autor
prefere olhar para um passado mais recente —o mundo clássico, onde
governo e governados eram um corpo só, sem as estruturas de mediação (e
de opressão) que ele observava no mundo moderno (e, em particular, na
sua Genebra natal). E como recuperar essa liberdade impoluta?
Pela
constituição de uma “vontade geral”, que, para Rousseau, não representa
a soma de meras vontades particulares. Pelo contrário: participar na
“vontade geral” implica uma renúncia a esses egoísmos privados e
mesquinhos. A “vontade geral” procura apenas o bem racional, convidando
os homens a cooperarem entre si rumo ao fim verdadeiro.
Como
comentará mais tarde Isaiah Berlin, “se os homens racionais acabam por
chegar racionalmente às mesmas verdades, então os homens desejam as
mesmas coisas, que serão igualmente boas para todos os homens
racionais”.
Uma
pergunta, porém, torna-se inevitável: e se os homens, ou uma parte
deles, não desejarem as mesmas coisas? E se eles discordarem do bem
racional e do fim verdadeiro?
Para
Rousseau, eles devem ser “forçados a serem livres”, um eufemismo
delicioso e sinistro que teve na guilhotina de Robespierre, no gulag de Stálin ou nos campos de extermínio de Hitler a sua conclusão lógica.
2.
É contra esse programa liberticida que a obra política de Scruton se ergue.
Para
começar, interessou a Scruton revisitar as premissas do pensamento de
Rousseau —a ideia inspiradora de que nascemos livres nesse “estado da
natureza” e que somos posteriormente aprisionados pela sociedade civil.
O autor não opta pela paródia (como Edmund Burke
no seu “A Vindication of Natural Society”) ou pela afirmação
destrutiva, porém óbvia, de que nunca ninguém observou esse “estado da
natureza” e que portanto é inútil construir castelos de areia sobre
alicerces tão duvidosos (Burke uma vez mais, sobretudo nas “Reflexões
sobre a Revolução na França”).
Scruton
aceita essa experiência de pensamento e reconhece que a visão idílica
do “estado da natureza” tem os seus encantos. Se pensarmos bem, viver sem leis, sem autoridade e sem normas morais significa, à primeira vista, desfrutar de um nível de liberdade na sua expressão máxima.
O
problema, acrescenta Scruton, é que a fruição dessa liberdade termina
depressa: se eu só faço o que desejo, é razoável supor que os outros só
façam o que desejam. Sem surpresas, essa situação acabará por implicar
um confronto de desejos, sobretudo quando estão em causa recursos
limitados.
Esse
confronto só irá terminar de duas maneiras, conclui o autor: pela morte
ou pela dominação, isto é, pelo extermínio do rival ou pela submissão
dele.
Eis
o grande paradoxo: o que começa por ser uma radical ausência de
constrangimentos transforma-se rapidamente no maior de todos os
constrangimentos. O que permite concluir que a liberdade natural não
passa de uma liberdade destrutiva e autodestrutiva.
E
aqui está o segundo paradoxo: as leis, as instituições, a disciplina
moral, as instituições criadas pelos homens e tudo aquilo que Rousseau
via como obstáculo à libertação total são os condimentos que tornam a
liberdade humana possível.
Essa
liberdade depende do compromisso —e o compromisso depende da
reciprocidade: eu reconheço e respeito os direitos dos outros da mesma
forma que espero ver reconhecidos e respeitados os meus direitos.
Por
outras palavras: os homens não nascem livres; eles tornam-se livres,
escreve Scruton. A liberdade não é uma dádiva natural, é uma conquista
civilizacional que exige o sacrifício dos nossos ressentimentos.
A
“cultura de repúdio”, que Rousseau inaugurou, recusa esse compromisso; e
a mentalidade revolucionária, em 1789 (na França), em 1917 (na Rússia)
ou em 1933 (na Alemanha), só aceita “recriar o mundo como um mundo não
criado” (uma belíssima formulação de Scruton).
É
o retorno ao “estado da natureza”, sem dúvida, mas é também um retorno
ao medo, à violência e à barbárie, independentemente de falarmos de
jacobinos, bolcheviques ou nazistas.
Todos eles partilham a mesma “tentação totalitária” de abolir as
instituições existentes (a lei, a propriedade, a religião) para assim
cumprirem a sua utopia.
3.
Ao
longo da vida, Roger Scruton teve oportunidade de se confrontar com
esse espírito de repúdio. Faz parte da lenda identificar o nascimento do
seu conservadorismo no Maio de 1968, em Paris, quando os revolucionários marchavam contra a moral “burguesa” e as suas instituições “reacionárias”.
Mais
recentemente, em livro de entrevistas com Mark Dooley (“Conversations
with Roger Scruton”, Bloomsbury), Scruton corrige a lenda: o seu
conservadorismo nasceu na Itália, quando o partido comunista ameaçava
tornar-se hegemônico, e só posteriormente foi reconfirmado com os
“événements de mai”.
Seja
como for, em Roma ou Paris, o que Scruton detectou foi o tipo de
repúdio que Rousseau e os seus herdeiros já tinham recomendado ou
praticado antes: uma dinâmica de rebelião contra a democracia liberal e as suas instituições mais representativas.
Nesse
momento, o boêmio e romântico Scruton descobre-se do outro lado das
trincheiras —“um rebelde contra a rebelião” e um defensor da liberdade e
da ordem “burguesas” contra o irracionalismo da destruição.
Historicamente,
podemos afirmar que a causa de Scruton triunfou: a democracia francesa
perdurou e o general De Gaulle venceu as eleições de junho daquele mesmo
ano com uma margem folgada.
Scruton,
porém, discorda desse triunfalismo: a “cultura de repúdio” sobreviveu a
1968 e tornou-se dominante nos meios intelectuais e acadêmicos. O livro
“Pensadores da Nova Esquerda”, talvez o mais polêmico dos seus
trabalhos, procura mostrar como os “soixante-huitards” promoveram o
espírito de repúdio no reino devastado das humanidades.
Contra
esse espírito destrutivo, relativista e niilista, a função do
conservador é, precisamente, conservar o patrimônio moral, legal e
cultural que, sobrevivendo aos testes do tempo, mostrou a sua validade e
intemporalidade.
Num
contexto especificamente britânico, isso começa por significar a defesa
de uma tradição de liberdades (no plural) que, pelo menos desde a Magna
Carta de 1215, negava ao rei um poder absoluto ou arbitrário.
Em termos culturais, cabe ao conservador ser o guardião da “alta cultura”, entendida sem complexos como a cultura das elites (no sentido espiritual do termo) que permitirá a formação de novas elites.
Defender o que de melhor foi criado ou pensado não é apenas um imperativo estético, embora esse critério seja crucial para quem ainda aprecia a presença de beleza no mundo. Também é um imperativo ético e epistemológico: defender a tradição das grandes obras é dotar os homens de um reservatório de conhecimentos e de recursos morais que são úteis para a vida em sociedade.
Como
afirma repetidamente Scruton, citando uma observação de Oswald
Spengler, sem a defesa da tradição, a começar pela tradição artística do
Ocidente, chegará um dia em que os quadros de Rembrandt ou as composições de Mozart
deixarão de existir. Não no sentido material do verbo, mas porque não
haverá mais ninguém capaz de entender a mensagem que tais obras
transportam.
4.
Que
Roger Scruton se tenha assumido como o defensor da tradição e da alta
cultura é algo que a sua biografia talvez não justificasse. Sobretudo se
tivermos do “conservador” a ideia caricatural de que ele pertence
sempre às classes aristocráticas, defensoras do status quo.
Nada
mais errado: quando olhamos para o conservadorismo britânico, um dos
seus aspectos mais surpreendentes é o número de autores ou políticos
conservadores que não eram aristocratas. De Edmund Burke a Benjamin
Disraeli, de Michael Oakeshott a Margaret Thatcher,
o que essa galeria de nomes nos diz é que conservar a tradição liberal
britânica é do interesse de todos os homens livres, independentemente do
seu berço ou da sua conta bancária.
Scruton
não é exceção. Nascido em fevereiro de 1944 em Buslingthorpe, no
condado do Lincolnshire, o autor era filho de um professor do ensino
básico e de uma dona de casa.
A
infância não foi feliz. O seu pai Jack, nas palavras do filho, era “uma
bola de eletricidade que se sentava imóvel no meio da sala”. De
temperamento violento e ressentido, Jack Scruton tinha, porém, um amor
pela Inglaterra rural que legou ao filho.
Aluno
aplicado na Royal Grammar School de High Wycombe, acabaria por
ingressar na Universidade de Cambridge onde, no primeiro dia de aulas,
trocou ciências por filosofia, disciplina em que se formou.
Depois
de um período de diletantismo literário pela Europa continental, onde
teve a sua conversão ao conservadorismo com as sublevações de Paris,
regressou a Cambridge para se doutorar com uma tese sobre estética (“Art
and Imagination: A Study in the Philosophy of Mind”, sob supervisão da
notável pensadora Elizabeth Anscombe).
Mas
a vida acadêmica nunca casou bem com o seu temperamento e, mais ainda,
com as suas inclinações políticas: professor no Birkbeck College, da Universidade de Londres, rapidamente foi olhado com desconfiança pelos seus colegas progressistas.
A
desconfiança rapidamente deu lugar à hostilidade depois da publicação,
em 1980, do livro “The Meaning of Conservatism”, uma defesa do
conservadorismo que, ironicamente, era uma crítica ao conservadorismo da
“bête noir” do momento, Margaret Thatcher.
Juntamente
com o livro, as suas colunas para o jornal The Times (reunidas na
antologia “Untimely Tracts”) e a direção da revista conservadora The
Salisbury Review (onde escrevia vários artigos sob pseudônimo, por não
encontrar conservadores dispostos a dar a cara) fizeram dele um pária.
Como Scruton recordaria mais tarde, no Birkbeck College só existiam dois
conservadores: ele próprio e a senhora que servia os cafés aos
professores.
Privado
de camaradagem acadêmica, acabaria por encontrá-la no jornalismo inglês
—que foi decisivo para refinar e aclarar o seu estilo literário— e,
sobretudo, no leste da Europa: a partir de 1979, Scruton iniciou uma
colaboração clandestina com todos aqueles que, sob as garras do regime
comunista, procuravam algum oxigênio intelectual (e ocidental).
Os
seus textos sobre esse período, relatos das viagens e dos encontros que
fez do outro lado da Cortina de Ferro, são, a todos os títulos,
magistrais como retratos da asfixia totalitária. A exata asfixia que os
seus colegas universitários defendiam no conforto e na segurança de
Londres.
Com a queda do Muro de Berlim
e o fim do comunismo, os ensaios de Scruton passaram a ocupar-se de
matérias menos políticas, mas nem por isso menos prementes: a
importância da beleza, as “intimações” da religião, os limites do
cientismo, o apelo da caça e até as virtudes filosóficas do vinho.
O
seu “I Drink, Therefore I Am” é uma apologia dos prazeres de Baco,
tidos como necessários à vida contemplativa. A finalizar o seu tratado,
Scruton escolhe algumas garrafas da sua preferência e indica quais os
melhores filósofos para as acompanhar.
Immanuel
Kant, um dos autores mais importantes na formação de Scruton, vai muito
bem com um malbec argentino. Hegel, outro gigante do panteão, pede um
Chianti Classico de Vignamaggio.
E Scruton? Qual será o líquido apropriado?
Bom,
sem pretender usurpar a sabedoria do mestre, sempre defendi que os seus
melhores ensaios políticos —“The Meaning of Conservatism”, “Philosopher
on Dover Beach”, “The Uses of Pessimism and the Danger of False Hope”—
merecem um bom tinto do Douro (um Terras do Grifo, digamos).
Já
os tratados estéticos da minha eleição —“The Aesthetics of
Architecture”, “The Aesthetics of Music”, “Beauty”— convidam a um vinho
do Porto (Ruby, reserva).
E
se o leitor vê nas minhas escolhas uma certa inclinação por vinhos do
norte de Portugal, confesso a minha parcialidade: como defendia Scruton,
o amor pela casa (“oikophilia”) é o princípio da aventura humana e da
filosofia conservadora.
Brindo a isso.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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