Algumas forças parecem satisfeitas, como se não houvesse uma política real inspirada pela morte. Fernando Gabeira para o Estadão:
Um
momento de trégua pode ser interessante quando as forças se reorganizam
para o inevitável combate que virá adiante. Mas pode ser fatal, quando
elas se distendem e acham que o processo chegou ao fim e que o
presidente Bolsonaro desistiu de seu projeto autoritário.
A
oposição foi às ruas muito rapidamente depois do 7 de Setembro. O ato
bolsonarista foi organizado durante dois meses, com trabalho intenso e
um empenho do governo federal.
Além
da rapidez, as forças de oposição que foram às ruas cometeram o erro de
excluir outras, não souberam contornar as dificuldades que surgem numa
frente ampla. É ingenuidade supor que o PT e seus aliados iriam às ruas
sabendo que Lula seria criticado. A expressão nem Lula nem Bolsonaro é
uma afirmação eleitoral, voltada para 2022. Ignora as circunstâncias do
momento.
Além
do mais, uma dupla negação não basta para mobilizar. Entre Lula e
Bolsonaro existe uma miríade de alternativas. Qual delas estava em jogo,
o que propõe para o Brasil?
Tanto
o recuo de Bolsonaro como a escassez de gente nas ruas deu aos
deputados o argumento de que precisam para continuar sentados em cima
dos pedidos de impeachment. O governo, para eles, torna-se uma vítima
atraente da qual ainda se pode arrancar muito, em verbas e cargos.
Da
mesma forma, alguns chamados pacificadores estão em busca de uma
parcela de poder, oferecendo a Bolsonaro algo que não deveriam poder
dispor, como, por exemplo, a impunidade se seu filho Flávio Bolsonaro.
O
que ficou claro é que Bolsonaro recuou de sua disposição de derrotar o
Supremo. Houve um plano claro de invasão do prédio do STF, utilizando
uma vanguarda de manifestantes e caminhões. Da mesma forma, houve uma
articulação entre uma numerosa presença nas ruas e o bloqueio das
estradas pelos caminhoneiros.
Este
é o roteiro básico que ele poderá voltar a usar, sobretudo quando for
derrotado nas eleições de 2022. Pelo que observei no Chile, manifestação
de caminhoneiros é mais eficaz quando se coloca contra um governo. Da
mesma maneira, no contexto de uma eleição recusada pelos perdedores, é
mais difícil de conter a violência de milícias armadas.
Grandes
empresários foram filmados rindo em torno de uma mesa diante de
imitações de Bolsonaro. Parecem relaxados e satisfeitos, pois acham que
continuarão ganhando dinheiro como sempre.
Ocorre
que o processo de destruição da natureza continua. Cerca de 17 milhões
de animais morreram queimados no Pantanal. As emissões na Amazônia já
superam o carbono armazenado pela floresta. O processo de perdas humanas
na pandemia chegou a um ponto muito alto e, agora, parece declinar. Mas
o assalto aos recursos naturais não cessa e caminhamos para uma
situação irreversível. Nem a morte de quase 600 mil pessoas nem uma
política patológica de destruição ambiental podem ser consideradas
motivo de riso. Sem contar com o perigo futuro de prisões, tortura e
mortes que decorrem de um golpe de Estado da extrema-direita.
Ao
invés de aproveitarmos o relativo fracasso da tentativa de golpe de
Bolsonaro e seu recuo tático, algumas forças parecem satisfeitas, como o
se o único problema de Bolsonaro fossem suas barbaridades ditas num
cercadinho e não houvesse uma política real inspirada pela morte.
A
oposição precisa amadurecer. Se insistir na escolha de um candidato a
2022, e não na defesa da democracia, estará fortalecendo o golpe. Há
tempo para o processo eleitoral. Mas antes dele é preciso constituir uma
ampla e efetiva aliança para pressionar Bolsonaro, buscando ou o
impeachment ou um desgaste que o leve a 2022 tão enfraquecido que não
terão eco suas denúncias de que perdeu porque as urnas eletrônicas são
fraudadas. A partir de uma certa margem, a denúncia tem menos
credibilidade.
O
melhor aproveitamento da pausa é o exame do fracasso da tentativa de
golpe. Seus contornos foram definidos. Mas onde esbarrou? Como
fortalecer ainda mais as linhas democráticas que o contiveram?
Temer ofereceu a Bolsonaro uma saída ostensiva. Não se sabe que tipo de acordo foi tramado nos bastidores.
Posso
estar enganado, mas minha experiência me indica que Bolsonaro não se
arrependeu nem fez suas acusações no calor do momento. Felizmente, para
nós, ele é pobre em planejamento. Quando subiu ao palanque e disse que
convocaria um nebuloso Conselho da República, estava apenas dando uma
satisfação aos manifestantes. Mostraria a foto da multidão e ela teria
efeitos milagrosos. Uma espécie de cloroquina política.
Ainda
não foi desta vez. Mas uma das piores atitudes diante de um golpe é
ignorar sua aproximação e não se preparar para ele. Mesmo os que
acreditam que não tem viabilidade histórica e seria derrotado com
relativa rapidez precisam compreender que o momento de um golpe de
Estado é muito nebuloso, tudo pode acontecer, não há controle. Todos os
atores importantes deveriam ter seu plano de preservação e saber como se
comunicar entre si.
Não
creio que seria eficaz discutir isso em espaço aberto. Mas o aviso fica
aí. Vivi alguns momentos como este, no Chile, no Brasil, e vi como as
milícias se multiplicavam na fragmentação da ex-Iugoslávia. É algo
sério. Empresários risonhos não têm ideia do quanto dói.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
Nenhum comentário:
Postar um comentário