Frente ao potencial regressivo da miséria, só iniciantes se encantam com 'avanços' atípicos dos últimos 200 anos. Luiz Felipe Pondé via FSP:
Não
vou falar de racismo, nem do seu justo combate. Deixo o tema para
aqueles que reclamam seu lugar de fala e que, aos poucos, vão
constituindo um novo nicho no mercado corporativo de consultorias,
palestras, workshops e MBA.
O destino da chamada esquerda identitária é
repousar no marketing, no compliance e na violência corporativa
clássica. E encontrará aí seu lugar de fala, como tudo que recebe as
bençãos da mercadoria. Entretanto, que os afoitos da vitória das
identidades não esqueçam que o capital nunca será de confiança.
Reflito aqui sobre a escravidão
dissociada da ideia de raça ou da sua forma mais recente conhecida nas
Américas como a escravidão dos africanos e seus descendentes.
Escravidão
é um modo de produção. E como tal, poderá voltar a qualquer instante em
que a economia entre em colapso e retorne aos seus modos primitivos de
organização. Essa realidade, de forma alguma, diminui o necessário
combate a ela enquanto forma de violência social, nem tampouco diminui o
valor do esforço histórico de eliminá-la das Américas ao longo do século 19.
A
luta pelos direitos humanos permanece na sua inteira validade enquanto
ferramenta moral e política, entretanto, em nada essa luta afeta o fundo
da realidade humana em que, dadas certas circunstâncias materiais, todo
o edifício reconhecido como moralmente justo pode ruir de um momento
para o outro. É desse ponto de vista que olho aqui a questão da
escravidão. Só iniciantes se encantam com "avanços" atípicos dos últimos
200 anos.
Reconhecer
que a escravidão é um modo de produção sempre à mão carrega algumas
consequências para quem queira pensar na sua existência numa chave
histórica de longa duração, como diria o historiador francês Fernand
Braudel (1902-1985).
Por outro lado, quando retiramos Hegel (1770-1831) do centro do materialismo histórico de Marx
(1818-1883), nos resta uma forma peculiar de consciência histórica que
se caracteriza por perceber que os modos materiais de produção
determinam a supraestrutura social sem nenhum pressuposto de evolução ou
aperfeiçoamento da relação entre senhor e escravo.
A
miséria pode retomar a relação primitiva entre senhor e escravo a
qualquer momento em que ela, a miséria, volte a se impor como modo de
organização da produção das sociedades. Dito de outra forma: os
conflitos sociais não levam a lugar nenhum a não ser a sua repetição de
formas distintas e circulares.
Precisamos
extirpar Hegel do coração do marxismo para reabilitá-lo como ferramenta
de entendimento do mundo, caso contrário, em breve, Marx será patrono
das fintechs.
Durante
anos se repetia uma frase supostamente atribuída ao físico Albert
Einstein (1879-1955) que era a seguinte: "Não sabemos a totalidade das
armas da terceira guerra mundial,
mas as da quarta serão o arco e a flecha". Essa frase carrega em si o
sentido implícito de que a destruição da ordem social conhecida dos
últimos anos poderia nos levar de volta a práticas consideradas
superadas no âmbito das guerras. Mas ela vale para outros âmbitos
relacionados às técnicas de produção social.
A
conclusão necessária dessa forma de pensamento é que não há barreiras
morais ou políticas para o retorno da escravidão se, em algum momento
específico da história, grandes diferenças de poder se espalharam por um
mundo em desordem política e econômica. Povos mais poderosos
escravizarão povos menos poderosos para atingir os mesmos fins que
pareciam tão normais a homens inteligentes como Aristóteles (384
a.C.-322 a.C.) e outros antigos.
Entre
os séculos 16 e 19, os africanos estavam justamente nessa condição: uma
reserva de vulneráveis à disposição para o uso das "plantations" das
Américas. O que acabou a escravidão, por enquanto, foi o avanço técnico
dos modos de produção da vida, só isso, nada mais. O combate ao
preconceito é (quase) inócuo diante desse fato.
A
humanidade não evolui moralmente. A ideia dessa falsa evolução, hoje
tão cantada em prosa e verso, é apenas a nova forma da velha promessa de
que o capitalismo seja o clímax da vida moral.
blog orlando tambosi
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