É ilusório pensar que o país volta à calma sem neutralizar Bolsonaro. Fernando Gabeira via O Globo:
À
medida que o carro avança, os nomes dos lugares me fascinam:
Divinópolis, Doresópolis. Qualquer dia, paro para dar um balanço desses
nomes em Minas. Ou então para documentar as configurações e nuances do
céu. Hemingway descrevia certas nuvens como camadas de sorvete. No
crepúsculo em Minas, róseo e dourado, sinto como se o universo fosse uma
capela com o teto pintado pelo Mestre Ataíde.
Com um país tão interessante, não consigo ainda explicar por que tanta confusão converge para sua capital, Brasília.
Essa
história da vacina da Davati, por exemplo, é um roteiro de chanchada.
Um dirigente de empresa que recebe auxílio emergencial e um cabo da PM
que não consegue pagar o aluguel resolvem oferecer 400 milhões de
inexistentes vacinas AstraZeneca.
Usam
um reverendo para se aproximar do governo. O reverendo é amigo de um
homem que se diz super-homem. Sua entidade religiosa falsifica logotipos
da ONU, e ele se diz embaixador da paz. Ungido por quem? Por outro
reverendo, o famoso Moon. Sua grande missão diplomática foi ir a Israel
para unir judeus e árabes, tarefa que, como todos sabemos, alcançou um
perene êxito.
Às
vezes, o enredo que passa pela CPI ganha um tom de pornochanchada com a
contribuição do senador Heinze, que descobriu pesquisas contra a
cloroquina financiadas por uma ex-atriz pornô chamada Mia Khalifa, que,
agora, empolgada com sua inclusão no roteiro, quer visitar o Brasil para
ajudar no combate à pandemia.
É
tudo inacreditável, mas gira em torno de um governo que manda uma
comissão a Israel para monitorar um spray contra a Covid-19, repleta de
parlamentares que, certamente, levaram bomba nas aulas de ciência.
Num
desvario como este, o próprio Bolsonaro se dedica agora a reproduzir,
no âmbito tropical, a derrotada trajetória de Donald Trump. Primeiro
passo: questionar previamente as eleições. Segundo passo, perdê-las e
entupir a Justiça com recursos unanimemente rejeitados. Terceiro passo:
tentar o golpe invadindo o Capitólio e, finalmente, sobreviver na
planície como um presidente injustamente vencido pelas “fraudes
eleitorais”.
Tudo
isso poderia ser tão patético quanto o plano do grupo que queria vender
vacinas inexistentes. No entanto não é, porque nem todas as forças que
reagiram nos EUA podem ter a mesma ênfase no Brasil. Nos EUA, as Forças
Armadas se colocaram de forma inequívoca contra qualquer tipo de golpe.
As brasileiras não parecem tão enfáticas.
Não
é impossível que Bolsonaro tente realizar suas ameaças. O que parece
realmente impossível é qualquer êxito, no médio e longo prazos.
Teria
de suprimir a internet com grandes repercussões econômicas, sentiria o
peso do isolamento internacional e a rejeição de uma ampla maioria do
povo.
Claro
que Bolsonaro não se importa com essas variáveis. Mas potenciais
aliados deveriam contar com elas. Nos primeiros dias, tocam o Hino
Nacional, escrevem-se pequenas biografias dos vencedores ocasionais, e o
país se enche de árvores pintadas de branco e oportunistas com
bandeirinhas.
Mas o curso da história é terrível para quem se aventura a negá-lo e reinaugurar a Idade das Trevas.
Por
isso, é importante que a Justiça puna ameaças, para dissuadir os
impulsos golpistas de Bolsonaro. Mas tudo indica que ele não se deterá
até a fase três de seu delírio tropical. Nesse caso, será preciso
derrotá-lo de vez, profundamente.
Todos
os lances de seu projeto autoritário estão claramente delineados. O
preço de considerá-lo apenas um fanfarrão seria muito alto: ele
estimulou a compra de armas, mobilizou-se para negar a pandemia e
apontou, cuidadosamente, inimigos para que não faltassem alvos para o
ódio acumulado.
Serão
necessários muito cuidado e habilidade, mas é ilusório supor que o país
volte à calma sem neutralizar Bolsonaro, assim como são risíveis as
constantes promessas de que um dia, finalmente, ele vai adotar a
moderação.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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